...Foi como me sentí ao ler as primeiras manchetes da manhã, sob a suave brisa de final de Inverno, 37°C à sombra seca da árvore desfolhada que me contemplava nua, sem graça e envergonhada. Meus filhos já tinham ido, dizem, para a escola, minha empregada nunca chega antes das 10:00 horas, acreditem, e eu de pé à s sete, como um tolo. As manchetes se destacavam em letras garrafais, estampadas sobre o papel com tinta ainda fresca em cima de nossa puída mesa de jantar que durante anos foi mesa de estudos dos meninos, vejam só. Por preguiça, ali ficavam as malas, ali ficava a sujeira das borrachas e alí permaneciam as marcas indeléveis do tempo que foge ao nosso controle. Que ruído é este? Parece, talvez, um gemido...Nossa velha cachorrinha espreguiça na cadeira que ela herdou de mim, tantas as vezes que se apossou, acha natural que seja seu local de origem agora.
Um formigamento lento invadia minha face desde o momento que eu lera as manchetes, uma estranha sensação de coceira ,comichão, talvez uma cócega que me incomodava. Eu estava pasmo com as letras que se espraiavam bem à minha frente.
Toca a campainha, imagina, a coitada esqueceu a chave de novo.Pensando bem, é melhor ela esquecer a chave do que outros se lembrarem de achá-la e virem fazer a festa. Atendo.
--Bom dia! Nossa!
--Que foi?
--Patrão, o senhor tá doente?
--Que eu saiba, ainda não. Por quê?
--Que é isto em seu rosto?
--Nada não. Deve ser alergia, deve ser coceira da água da Sabesp.
--Coceira da água da Sabesp? Isto não existe!
--Certo, verdade, isto não existe. Não sei o que seja!
--Começou hoje?
--Agora há pouco. Depois que lí isto no jornal!
A moça deu uma olhada e visivelmente empalideceu.
--Minha mãe querida do padre nosso e do vigário geral!
--Pois é.
Nesta altura, já a coceira dera origem a uma espécie de prurido incontrolável que me levava a coçar o nariz sem parar. Eu sentia de certa forma um intumescimento a crescer sem controle na ponta do dito cujo.
--Patrão!
Assustei com seu grito.
--Que foi?
--Tó mareada...
--Não vai me dizer que está grávida!
--Não, a gente tomou cuidado, lembra? Não é isso não!
--Que é então?
--Tó com coceira no nariz!
Visivelmente aparecia uma mancha rósea em seu nariz e o meu já intumescia com dor, numa tranformação nada prazeirosa. Ela me olhava e assustada fazia o sinal da cruz. Eu me persignava, sempre fui agnóstico mas se até Mario Covas se converteu, por quê não eu? A empregada já chorava, visivelmente constrangida com nossa situação. Liguei para minha mulher, celular ocupado, tú tú tú. Vai ver que "o sistema está ocupado", tú tú tú. Nestas horas, nada funciona, é incrível!
--Será que tem alguma coisa no jornal?
--Como assim?
--Na tinta do jornal, o cheiro tá forte.
--Pode ser. Acho, mesmo, que é o que está escrito é que nos faz mal.
--Não há mal que dure sempre...
--...Mas este veio para ficar, eu acho.
Eu passava a mão em meu rosto, mal acreditando no que sentia: uma bola, inchada. se delineava perfeitamente na ponta de meu nariz. Minha empregada não sabia se ria do que via ou chorava pelo que sentia. Humilhado e com raiva, fui ao banheiro ainda com o perfume dela do banho e dos aromas matinais. O que ví, no espelho, de certa forma não me deixou nada espantado.
--Patrão!
--Que é desta vez?
--Tó com medo!
--Que houve?
A moça, de seus vinte e poucos anos, olhava horrorizada para mim, como se eu fosse um monstro. Mas ela não deixava nada a desejar e eu notei que o que ela tinha no nariz era o mesmo que eu já apresentava como se fora um apêndice do meu corpo, uma bola que agora me obrigava a respirar de boca aberta.
--Tó ficando sufocada!
--Respire pela boca.
--Ah! melhorou!
Gritos se faziam ouvir e pessoas falavam em voz alta. O espanto se espalhava, éramos um povo surpreendido por uma súbita mudança, éramos um enorme grupo unido pela característica comum de nossos intumescidos narizes avermelhados e pruriginosos.
--Será o ar seco?
--Não, duvido. Acho que a coisa é mais embaixo.
Falando isto, eu e ela olhamos pela janela e vimos uma multidão que coçava seus narizes, uma enorme multidão que gritava, que berrava sua transformação instantànea, inesperada, horrorosa.
Notei logo a seguir a mancha que delineava como que um contorno em torno de meus lábios, de cor esbranquiçada, fazendo-os se destacar contra o fundo pálido de minha pele suarenta. A empregada deu um pulo para trás, ainda mais estupefata e pegou de sua bolsa o indefectível espelhinho, ao que a seguir quase desmaiou pois viu a mesma pintura nascer em sua pele como por encanto, delineando seus lábios enquanto que em mim meu nariz brilhante e vermelho em forma de bola já assumia a feição definitiva, que eu teria de carregar pelo resto de minha vida a partir daquele instante de suprema angústia. Juntos, olhávamos um ao outro como deviam todos os que tinham olhos estar fazendo naquela fatídica hora, a hora de ler a notícia no jornal do dia. Maldita hora que eu pegara o jornal na porta da sala, devia fazer como meus filhos, nunca ler nada, nunca tentar saber de nada, nunca "estressar". Mas naquela hora, mesmo, nada havia a fazer senão contemplar. Minha empregada agora se transformava em uma bela palhacinha, e eu não passava de um Clown entristecido e velho. Foi quando voltamos os olhos marejados ao jornal. Lemos em uníssono: