Dias atrás, enquanto esperava terminar o banho dos meus cachorrinhos Brisa e Páris, no Pet Care, sentada à minha frente, uma simpática senhora, aparentando uns oitenta anos, aguardava a sua vez de consultar o veterinário com um fox terrier no colo. O pobre bichinho, assustado e ganindo, tinha uma pata fraturada.
Conversa vai, conversa vem, ela me contou que alguém, acidentalmente, havia pisado em Júnior, nome do cãozinho, que já estava com quinze anos. Rapidamente fez os cálculos das idades e concluiu que, se fosse humano, Júnior teria entre 90 e 95 anos. Estamos velhos, comentou, afagando a cabeça do animal.
Mostrando desànimo em seu falar acaipirado, sotaque típico do interior do Estado de São Paulo, comentou que é impossível criar cachorros em apartamento. Principalmente considerando-se o tamanho do seu imóvel.
Enquanto eu concordava com tudo, ela, com a voz embargada, mencionou a saudade do sítio onde nasceu e morou por muitos anos. Lá, sim, dava gosto criar animais de todos os tipos, desabafou.
Como conheço quase todo o interior paulista, e morei em diversas cidades por quase 25 anos, perguntei de onde ela era:
- Dracena, na Alta Paulista! Respondeu a senhora, com os olhos brilhando.
A maneira como enfatizou Alta Paulista transportou-me a um passado no qual o Brasil, principalmente São Paulo, era cortado por inúmeras e famosas estradas de ferro.
A juventude de hoje não tem a mínima idéia da importància atribuída à região geográfica que era cortada por uma via férrea.
Somente no Estado de São Paulo havia várias: Paulista, Sorocabana, Noroeste, Mogiana, Araraquarense, entre outras. Aproveitando o assunto, é bom lembrar que a cidade de São Paulo teve três estradas de ferro urbanas, os nossos antigos metrós de superfície.
A primeira foi a Companhia de Carris de Ferro de São Paulo a Santo Amaro. Inaugurada por D. Pedro II em 1886, a estrada começava nas proximidades do Cemitério dos Aflitos, hoje Praça da Liberdade com a Rua dos Estudantes. A segunda foi o Tramway do Ypiranga, que mal funcionou, de 1892 a 1903, devido a inúmeros problemas, principalmente as inundações causadas pelo rio Tamanduateí na Várzea do Carmo. E, por último, o inesquecível Tramway da Cantareira, para nós, paulistanos, o Trem da Cantareira, tema de verso e prosa que exerceu suas atividades de 1894 a 1964. Quem não conhece a música de Adoniran Barbosa, Trem das Onze, sobre a Estação do Jaçanã?
Guardo, com carinho, recordações dos piqueniques domingueiros, lá na Serra da Cantareira, levados por aquele trem, que ia cortando os principais bairros da Zona Norte da cidade.
A partir de 1971, quando o governo de São Paulo, por decreto-lei, unificou todas as ferrovias paulistas e criou a Fepasa, a decadência foi desastrosa. Atualmente, a Fepasa é utilizada somente para transporte de cargas, não leva passageiros. Da sua malha ferroviária original não resta nem 10%. Toda a infra-estrutura - estações, vilas de ferroviários, oficinas, locomotivas, vagões, trilhos, posteamentos e dormentes - virou sucata. Lamentável!
Hoje o transporte de passageiros, feito pelo metró e pela CPTM, que serve apenas a Grande São Paulo, merece críticas pelos atrasos, greves, acidentes, excesso de lotação e danificação dos equipamentos, principalmente por parte dos usuários.
Infelizmente, a mentalidade do povo mudou! Mas vamos divagar no tempo.
O orgulho mostrado pela senhora de Dracena ao se referir à Paulista tem uma explicação: entre todas as antigas ferrovias paulistas, era a mais moderna, pontual e digna de ser lembrada com saudades.
O grande desenvolvimento do Estado de São Paulo aconteceu devido à construção da Estrada de Ferro São Paulo Railway, que ligava Jundiaí ao porto de Santos.
Em 1859, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, e outros interessados convenceram o governo da importància de tal estrada.
As obras tiveram início em 1860. Devido à s características extremamente íngremes do trecho da Serra do Mar, para a movimentação dos comboios optou-se pela construção de um sistema funicular.
Construída por empresas inglesas de engenharia, a estrada foi inaugurada em fevereiro de 1867.
Seguindo o conceito de progresso, diversos fazendeiros paulistas, principalmente os barões do café, construíram uma nova estrada de ferro, para escoar melhor os seus produtos destinados à exportação.
Essa estrada, inaugurada em 1876, foi a lendária Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que ligava o terminal de Jundiaí da Estrada de Ferro São Paulo Railway até as barrancas do Rio Paraná, com diversas ramificações.
Depois de conversar com a simpática dracenense, já acompanhado dos meus queridos amiguinhos, fui relembrando as nostálgicas e saudosas viagens de trem.
A minha infància foi repleta de trens de fumaça!
Em frente à casa da família, em Itanhaém, onde passávamos as férias de verão, corria a Estrada de Ferro Santos a Juquiá, ramal da Sorocabana, que usávamos para as nossas viagens. Hoje, nem os trilhos existem mais.
Meu tio Aníbal, irmão da minha avó paterna, morava em Rio Claro, sede das oficinas da Companhia Paulista de Estradas de Ferro.
Passávamos lá as férias escolares de julho, no final dos anos 40, início dos 50. Aliás, nossa principal ansiedade, nessas viagens para Itanhaém e Rio Claro, era ir e voltar de trem.
Quantas lembranças! O vagão-restaurante, as velhas estações onde meninos vendiam frutas e artesanato da região. O chefe do trem, vestindo um uniforme impecável, que picotava as passagens com seu enigmático alicate. Isso sem falar dos deliciosos quitutes preparados com carinho e antecedência pela minha mãe, para saboreamos durante as viagens.
A Fepasa mantém até hoje, em Rio Claro, parte do imenso Parque dos Eucaliptos, madeira que servia de lenha para as fornalhas das antigas locomotivas a vapor.
Costumávamos passear no parque, todas as manhãs, e o inconfundível cheiro das folhas de eucalipto misturava-se com os longos apitos vindos da estação.
A minha grande decepção com a Fepasa ocorreu em 1976.
Num sábado à tarde, ao invés de voltar de Araraquara para São Paulo de carro, resolvi matar a saudade do trem.
Comprei a passagem no carro Pulman, o mais chique e, ansioso, aguardei a viagem.
Porém, mal o trem começou a sacolejar, teve início o meu tormento. O ar condicionado não funcionava e, sem conseguir abrir as janelas, pois os vidros eram fixos, o calor tornou-se insuportável. As cadeiras giratórias simplesmente não giravam nem inclinavam, permanecendo numa posição incómoda e desajustada. O banheiro estava tão sujo que poucas pessoas ousaram usá-lo, além disso, não havia vagão-restaurante ou qualquer tipo de serviço de bordo que servisse refrigerantes e sanduíches. Para tomar um simples copo de água era necessário esperar a estação seguinte. Moral da história: para chegar vivo à Estação da Luz precisei me acomodar de pé na plataforma de um simples vagão, pois o trem estava lotado.
Enfim, saudades e muitas lembranças daquelas velhas marias-fumaças que percorriam o Brasil afora e que foram, posteriormente, destruídas por governos insensatos que deram lugar à s perigosas e esburacadas estradas de rodagem, em prol do lema "O petróleo é nosso", e deixaram milhares de dormentes esquecidos.
Roberto Stavale
São Paulo, fevereiro de 2008
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