As batidas de um martelo, que não eram as de um juíz anunciando uma sentença, não marcavam necessariamente o fim de uma conversa para dar início a outra, mas teciam, com seu ritmo estruturante, o pano de fundo para um sem-fim de histórias de vivos e defuntos "desenterrados". Entremeavam-se também à lembrança dessas pessoas da mesma terra de origem, que as contavam sob o som compassado daquele utensílio de cozinha, pareceres e considerações sobre assuntos que se engatavam por livre associação de idéias das mentes à hora desocupadas, que ali naquele início de noite davam mais luz à amizade, que se alimentava de habilidades mutuamente apreciadas e ofertadas.
Aquele que batia o martelo, fazia-o para salvar do invólucro natural e dispensável ao estómago humano, uma leguminosa boa e vistosa, moldada pelas mãos de Afrodite, variando entre o vermelho e o vinho as cores de seu conjunto, formado por pequenas sementes em monte. As dezenas de bagos cor-de palha que, sabia-se, seriam destruídos para o objetivo da degustação, justificavam o encompridamento da prosa- quase toda sem um fim prático- que enchia o ambiente com seus achados reveladores e comentários de espanto e surpresa; assim, ora ela era vista como cenário à tarefa que se cumpria, embora prazerosa - pois havia gosto em quem a realizava- dando forma à língua solta; e ora, o trabalho é que era apenas mote para a intimidade criada à volta da mesa de estilo da cozinha, essa sim, promovendo a meta "sem-casca" para os muito usos do amendoím. Já havia lá um feito, que adoçava a boca e o espírito, dando sustentação para mais um caso salgado que era lembrado; outros desses haveriam de ter diferente destino, o qual não se cogitava naquela hora, também por quem batia o martelo que, vez por outra, levantava a vista à altura dos olhos negros da mulher e depois, aos da visita para, interessado, dar sua contribuição acertada à conversa, que o fazia parar por segundos o ruído ritmado que vinha impondo ao serviço.
Quando as duas conversavam, porém, aquele soar mantinha-se inalterado e a música que suas palavras compunham não obedecia à quela marcação que vinha sendo ouvida. Ao contrário, formavam a um aborrecido ouvinte uma balbúrdia sonora, que só era entendida e aceita por aqueles que a protagonizavam, sabendo-a legítima e condizente aos ritmos de seus corações à quela hora enlaçados. Um expert em música também acharia toada naquele aparente desencontro de batidas e vozes, unidas que estavam em acordes por quem soubesse decifrar aquela expressão de sentimentos.
Assim rendeu por um bem marcado par de horas a conversa que zanzou por um lado e outro da cidade em comum, esmiuçando ocorrências que envolveram moradores de quaisquer quadrantes , relevantes para aquele crochê de robusto porte. Ligando um ponto a outro, com a mestria ditada pela pronta lembrança de um caso novo, decorrente da citação de um fato anterior, esgotou-se ela naturalmente, como o burburinho das águas de um riacho se esvai, em função da seca.
Antes de fechar a noite, um último retalho da conversa- que se fez colcha de aconchego- propiciou um mais pensar à visita que já tomava o elevador para deixar a casa. Tratava-se de um amigo comum, desses "de bom coração", vitimado por doença justamente no órgão que lhe impunha o título. A história remeteu-a, de imediato, a outras conhecidas com as quais póde estabelecer uma relação: o violonista famoso que amputara um dedo, a cantora que havia perdido tristemente a sua voz... Seguiu em frente e não houve como não escutar, amplificado, um coração, nas batidas recentes ainda na memória, perfazendo o som ritmado do metal que descascava o amendoím...