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cronicas-->Roupa Velha -- 08/04/2008 - 18:55 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Como sempre, acordei, como toda manhã o faço, numa sucessão caudalosa de manhãs ensolaradas e vistosas que se parecem umas com as outras exceto por pequenas coisas que as fazem se suceder num infinito rosário de detalhes sutis que passariam despercebidos, não fosse eu um arguto observador das minúcias do dia e dos caracteres das pessoas. Todos têm ínfimos sinais, todas as pessoas têm minúsculos detalhes que passariam batidos não fosse minha observação colossal. Lá, o jornaleiro que ainda não colocou as revistas à exposição pública, mais adiante a bicicleta do tintureiro que ainda não tiniu no horizonte ( o pequeno oriental que a pilota tem gosto de tocar a campainha), do outro lado o cão do vizinho que não ladrou à passagem da velha senhora com os ovos gritando:

--Ovos! Ovos de pata, de galinha, ovos saudáveis! Ovos!...

O som rouco de sua voz ecoa em nossos ouvidos, tem um tom triste, cansado e profundo, sua dona tem o corpo mirrado mas firme dos campesinos da cidade, acostumados a agruras mais profundas. Lá mais ao longe, o grito inconfundível:

--Roupa velha roupa velha roupa velha...
--Garrafeiróo! Compra jornal e revista velháa!

Nas ruas calçadas corre a água da última chuva, num gorgolejo que as leva aos bueiros que as sorvem para o rio canalizado que corria ao fundo do vale da montanha dominada pela cidade do bairro antigo, tudo isto em lembranças acetinadas pela suave passagem do tempo, este feroz companheiro.

A cada manhã, eu via, do alto de nosso quarto brotar a vida em cada detalhe, em frente ao grande portão de madeira cinzenta que encerrava em sí o mistério da Casa do Outro Lado, que é como a conhecíamos. Em cada amanhecer estava a alvorada de todo um dia, de toda a minha vida e eu exultava, sedento de ar e de liberdade; nas mãos o rosário de todos os dias, numa prece profunda comigo mesmo, em comunhão com a natureza das águas que se esvaíam, de minha infància que passava.

O barulho de rodas e o grito distante dizia dos sorvetes, do quebra-queixo, do algodão doce, das casas tristes em que morávamos. A rua sem saída era uma metáfora não muito diferente da condição de grande parte daquela gente que habitava uns cortiços e que sabíamos serem pobres, e nem por isso deixávamos de considerá-los nossos iguais.

--Ovos....Ovos saudáveis, ovos de codorna...Ovos...!

O sol sempre despontou para nós mais tarde, pois a nossa rua era cercada de altos prédios e havia uma época em que ele só nos aparecia bem mais de nove horas da manhã. O tom acobreado do horizonte anunciava para nós o surgimento de mais uma esperança, de mais uma luz e de mais dias para agradecer...

--Garrafeiroó!

As chuvas se vão distantes, passou o tempo mas os cortiços e seu cheiro de comida e roupas, a Casa do Outro Lado, os personagens todos, a luminosa presença do sol, estes nunca se foram de mim. Quiçá nunca fossem.

--Roupa velha roupa velha roupa.....
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