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cronicas-->Pergunte ao mineiro -- 24/01/2000 - 10:17 (Edson Amâncio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
##PERGUNTE AO MINEIRO




Minas sobrevive na memória. Parece um clichê, mas é verdade. Na memória dos mineiros, sobretudo dos que partiram. Deus me livre do saudosismo de que certamente vão me acusar.
A memória é este repositório de recordações que, de tempos em tempos, inundam você em ondas sufocantes. Por falar em ondas. É pela falta delas que acusam o mineiro de sair de Minas, também. Acusam-nos de fazermos a maior população de migrantes na cidade de São Paulo, para alívio certo dos nordestinos, injustamente chamados - não raro com racismo explícito - de invasores. E Minas persiste, sobrevivendo nas lembranças: em São Paulo, em Santos e até mesmo fora do país. O próprio JK - em Minas ninguém fala Juscelino Kubitschek. No máximo Juscelino, JK é mais usado - ele próprio dizia que não via a hora de acabar seu exílio em Paris para voltar a Minas. Pensam que era para conspirar? Para resistir aos militares que já iam se eternizando no poder? Ledo engano! JK dizia, alto e bom som, que pretendia voltar logo ao Brasil para comer bolinho de feijão, no Ignacios, um bar da rua da Bahia, em Belo Horizonte - Bêagá ou BH, como se dizia então - onde se reunia a intelectualidade mineira. Reunia é modo de dizer: confabulava, cismava, ruminava, em volta de uma mesa para aquela conversinha, entremeada de respeitosa pausa para o bolinho de feijão, um gole de cachaça-de-engenho, que o botequineiro sabia ocultar das vistas dos não iniciados. Do papo aparentemente sem compromissos, enganosamente descontraído, de uma conversa dessas no Ignacios, podia sair de um a tudo. Do desmembramento de Minas da federação, a uma vaga certa na Academia Brasileira de Letras; de um conto do Hélio Pellegrino, até uma candidatura à Presidência da República, ou uma sinecura numa repartição.
Essa é outra faceta do mineiro: a da conspiração, da conversa manhosa, como quem não quer nada, como se cada um dos interlocutores desconhecesse o que o outro pensa, ao mesmo tempo em que tudo é sabido, tudo é conhecido por antecipação. Para Guimarães Rosa o mineiro espia, escuta, indaga, protela, se sopita, tolera, remancheia, perrengueia, sorri, escapole, se retarda, faz véspera, tempera, cala a boca, matuta, destorce, emgambela, pauteia, se prepara. Paulo Mendes Campos acrescenta outros derivativos: mineiro é estilo físico: de falar, de apertar a mão, de andar, de gesticular com os olhos, de cruzar as pernas, de encurvar as costas e pender a cabeça, como se escondesse. É principalmente um jeito de olhar de banda.
Em 1963, às vésperas portanto da revolução, dei com os costados na rua da Bahia. Estudante ainda, pré-universitário, ingênuo, mas já impregnado daquela aura mítica que envolvia os intelectuais mineiros, espalhando-os em revoadas sucessivas para o Rio de Janeiro e alhures - Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Hélio Peregrino, Otto Lara Resende, Fernando Sabino. O que eu fazia ali era andar no eco daqueles nomes que circulavam de boca em boca, em toda a Minas Gerais alfabetizada. Eu tinha uma vaga informação que ali, na rua da Bahia, estava concentrado a intelligentzia mineira. De forma que perambulei por lá, carregando um manuscrito debaixo do braço, ciceroniado por um tio que trabalhava no Diário de Minas. Andava à procura de um guru, um qualquer, no meio dessa legião de fantasmas que eu não conseguia divisar; à procura dos Drummonds, dos guimarães Rosas, para lerem o que eu havia perpetrado com 17 anos. Por infelicidade, talvez, não encontramos ninguém. Na véspera da revolução de 64 não havia ninguém no Ignacios. O bar estava abandonado às moscas. O bolinho de feijão me pareceu de mal aspecto. Filho único, isolado numa travessa de higiene duvidosa. Do jeito que entrei, saí. Onde andava essa gente incerta que já espalhara Minas na cara do mundo? Certamente conspirando, num lugar qualquer, à vista de todos, mas escondendo entre si o pensamento mais interior de cada um, porque esta também é uma das características do mineiro.
Saí dali meio desenxabido, de volta ao meu curral que ficava então um pouco mais em baixo, no Triàngulo Mineiro. Larguei o manuscrito na gaveta e me atraquei aos livros para enfrentar o vestibular na Faculdade de Medicina. Quem sabe meu destino teria sido diferente, se tivesse encontrado ali, num papo paciente, com algum daqueles ícones da minha juventude mal começando? Águas passadas! Meti a viola no saco e parti de volta para a outra Minas. A minha, no Triàngulo.
O Triàngulo, que se julga mais mineiro do que todo o resto de Minas - não raro com movimentos sérios de emancipação - por sua proximidade com São Paulo, afasta-nos de Belo Horizonte, em favor da capital paulista. Daí os descaminhos para o lado de cá.
Mas não interessa onde o mineiro esteja. Fora de Minas é sempre um coitado, digno de pena. Amarga o exílio dentro da própria terra. Não há nada que acabe com a paixão do mineiro por Minas. Nenhuma gigantesca São Paulo, nenhuma praia de mar encapelado deslumbra o mineiro para o resto da vida. Dizem que ele se acostuma. Besteira. Falsa síndrome de camaleão. Sisudez, timidez, recolhimento, receio de ofender ao estrangeiro (Qualquer lugar fora de Minas é considerado estrangeiro), fazem o mineiro parecer adaptado, silencioso no seu ajustamento ao lugar onde vive. Reclamar jamais! Não faz parte da índole do mineiro. Mineiro pode pechinchar, negacear, fazer de conta, contar causo, chorar miséria, esticar conversa, andar em volta. Mas nunca vai falar mal da terra alheia, do lugar que o acolheu. Faz parte da sua (nada simples) filosofia de vida. Coloca-se no lugar do outro, ouvindo falar mal da sua terra. E isto é insuportável. Mas pergunte ao seu amigo mineiro - seja ele pedreiro, carpinteiro, açougueiro, empresário, médico, alfaiate, barbeiro, biscateiro - , todos, sem exceção, estão voltando pra Minas. Uma ameaçadora migração em sentido contrário. Uma debandada sem paralelo - mas só na imaginação do mineiro, que, de resto, é fértil como a boa terra de Minas.
Mas Minas não tem mar! se diz por aí - bestamente. Os mais chauvinistas dizem que o mar suspira por estar longe de Minas. Mas isto é conversa pra fazer boi dormir. O mar de Minas existe! Está no imaginário do mineiro. Muitos vem conferir de perto. Chegam, geralmente desconfiados, e colocam uma cadeira de frente pro mar e ficam espiando, como se quisessem abarcar nas pupilas toda a imensidão colorida das águas, para, mais tarde, num futuro incerto, derramá-las sobre as encostas das montanhas do seu País Natal.
Mas o mineiro não é tudo isso apenas por causa de uma xenofobia marota. Nada disso. O mineiro sabe que na sua terra fundou-se a consciência nacional, que ali se deu a luta pela emancipação. Ele sabe dessa faceta emblemática da sua terra. Sabe por exemplo (e não se cansará de repetir isto quando questionado, mas só quando questionado) que só uma das suas cidades, Ouro Preto, financiou o progresso dos Estados Unidos inteirinho. Piada? Nem tanto. Até as crianças sabem disso, em Minas. Os adolescentes, sentados nas pracinhas das cidadezinhas do interior, enfatiotados nos finais de semana, discutem os destinos do mundo, tendo Minas como centro desse Universo facilmente abarcado. Sabem e propalam de geração em geração que em 1750, por exemplo, a população de Ouro Preto era quase quatro vezes maior que a de Nova York. 78.618 habitantes de Ouro Prêto para míseros 25.000 de Nova York! Que Ouro Preto não só financiou a inepta monarquia portuguesa, como também propiciou à Inglaterra fazer a revolução industrial, origem da fortuna atual dos Estados Unidos. O mineiro faz e desfaz esta contabilidade desde criança. Desde cedo aprendeu a pensar em Minas como o centro do mundo, mas o centro de um mundo um tanto quanto borocochó, deslocado, quase anacrónico, que - a custo admite - não deu certo.
Vem daí, dessas e de outras, que Minas acaba sendo o verdugo das nossas recordações. Quando estamos lá, nos afogamos num ufanismo infanto-juvenil, cantando a glória de antepassados longínquos, ressabiados pela falta de mar; quando fora, criamos dentro de cada um de nós, um imenso mar de lembranças. Daí não faltarem escritores, contistas, poetas, uns loucos, outros desesperados, pranteando essa tristeza insuportável que é viver longe de Minas.
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