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cronicas-->O Mito se Origina -- 02/05/2008 - 13:03 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ele sempre quisera se afastar da cidade que o fizera um mito da publicidade. Não raras eram as vezes que ele externava esta opinião em público, no mais das vezes levantando risos, pois devia ser mais uma de suas excentricidades. Como soltar sonoros arrotos ao chegar em sua mesa de trabalho.
--Na China, é boa educação à mesa, por que não aqui em minha mesa de trabalho?

Ninguém contesta um gênio, não é mesmo? Então, ele continuava seguindo em frente, fazendo campanhas cada vez mais vistas e melhor pagas. Era uma máquina de vender. Outra das coisas que gostava era de ter uma arma sempre por perto. Seu pai lhe dera um rifle que comprara quando vivera na Itália, pois achava que os Partisani entrariam em sua casa para levá-lo para a maldita guerra, para defender o "bigodudo", como ele chamava o Hitler. Vez em quando ia para um lugar deserto e limpava o rifle lentamente a acertava umas latas com seu rifle paterno. De qualquer maneira, deu para ter várias armas em casa, uma das coisas que horrorizava sua mulher refinada e culta. De quê adianta a cultura se você não se defende da vida, ele dizia e ela se retirava para seus livros enquanto ele vociferava algo a favor das liberdades individuais, da democracia que para ser forte, tinha de se armar e aí vai. Ele, muito depois, identificou este como um dos fatores que a assustava e mais de uma vez ele pensou em esconder as armas. Sempre que as olhava, no entanto, esquecia disto.
Dera, então, para pensar em algum lugar onde pudesse passar as tardes atirando, a sós. Procurou clubes de tiro e de sábados, ia com o rifle que era admirado pelos frequentadores do clube, por ser um tipo de rifle que não mais se fabricava. Ele se orgulhava disto e se sentia em casa, entre pessoas que pensavam como ele, que a liberdade, para existir, tem de ser vigiada e sempre demarcada, de preferência com autoridade. Era a época da ditadura aqui no país, ele tinha pendores para a esquerda, mas jamais pegaria em armas para lutar pela democracia, porque não tinha coragem de voltar a ser pobre, um pária em seu próprio país ou um guerrilheiro barbudo a descer as serras que não existiam, pelo menos como as que habitavam os sonhos dos socialistas, marxistas, trotskistas, vermelhos de plantão e anarquistas que conviviam com ele, talvez mais por moda do que por crença pessoal. Jamais ele deixaria de ter as regalias que conquistara; então a diversão deles era, nas reuniões, discutir a luta pela liberdade num plano de idéias, coisa que sua esposa culta também achava de certa forma um engodo, mas ela também não reclamava das festas maravilhosas que organizava e que eram elogiadas por todos os que as frequentavam. Nessa época eles ainda se davam relativamente bem, apesar das tensões crescentes e inadiáveis.

Foi nesta época que conheceu a casa de campo que o conquistaria depois. Ele vagava depois de um dia difícil, onde tivera séria discussão com um sócio seu que muito prezava mas que não o tolerava.
--Não tolero que arrote em minha cara!
--Os incomodados que se retirem.
--Sei muito bem que quer comprar a minha parte. Não vendo, entendeu? Você pode ser uma estrela, Ettore, porém não se fez sozinho. Você sabe muito bem disto! Somos em três agora, e eu vou vender minha parte em ouro! Se você quiser me arrancar daqui, mais fácil será me acertar com uma destas pistolas que guarda em sua mesa. Entendeu?
Ele saíra para espairecer por causa da briga, ninguém queria uma desgraça lá dentro, de forma que ele pegara seu carro e fora dar uma volta e quando viu estava na estrada a mais de cento e cinquenta por hora. Óbvio que não se admirou quando um policial o parou.
--Está com pressa, moço?
--De maneira alguma.
--Então deve ser algum problema no acelerador, eu acho.
--Pode ser.
--Documentos.
Quando ele abriu o porta-luvas e rebrilhou a arma que estava sempre à mão, o guarda se pós em guarda.
--Desça do carro!
--Calma, policial. Tenho porte de arma faz tempo.
--Vamos ver!
O outro policial, notando talvez que havia algo a mais, resolveu descer. Os dois olhavam para ele, olhavam para o documento do carro e verificavam a arma e seu registro.
--Seu Ettore, teremos de averiguar melhor o seu problema. Você sabe, terroristas, armas...
--Não é meu estilo. Sou dono de uma agência de publicidade, uma das maiores. Podem verificar. Aliás, se quiser, faço propaganda para vocês dois!
Eles se entreolharam e viram que ele falava a verdade.
--Vou ter de multá-lo por excesso de velocidade. A arma é sua?
--Sim, como pode ver o registro.
--Cuidado nos bloqueios, isto pode complicar sua vida porque hoje em dia nunca se sabe.
--Entendo.

Lavrada a multa (mais uma) ele póde seguir em frente, não sem antes bater um papo animado a respeito dos lugares ali perto. Foi quando ficou sabendo do povoado onde havia uma casa no alto de um morro que estava à venda, ele ficou sabendo que o dono morrera e seu filho estava tomando conta até vender a propriedade. Lá foi ele ver, ficava a uns dez quilómetros dali e ele mal podia acreditar quando subiu o morro e viu a casa, meio de madeira, meio de alvenaria, no alto, de onde ele descortinava toda a paisagem do povoado e de onde se via, em frente à sua janela, o morro encimado por nuvens pequenas a formarem figuras, em cuja base havia uma floresta intocada. Como pode uma coisa assim passar despercebida? O acaso o levara ali, foi por sorte que encontrou o proprietário, ele viu por dentro sua futura morada e não foi sem surpresa que decidiu comprar o imóvel, não sem antes ligar para sua esposa que ficou muda ao telefone. Ele a conhecia bem, mulher mais urbana que ela, impossível, jamais aceitaria mudar para a casa de campo. Imagine! A coisa estava de tal modo que ele já deixou um sinal, pois havia gente interessadíssima no imóvel, ele podia imaginar que sim, pois além do bosque intocado, corria ao fundo do vale um riacho cheio de quedas e que passava por dentro da propriedade e ele já sonhava em fazer um lago onde poderia criar aves, gansos, patos ou coisa que o valha. O proprietário o achou meio esquisito, mas achou a proposta muito boa. Ettore tomava decisões assim, mas nunca fizera uma compra sem antes pesar as consequências como ele fizera com a casa do alto do morro.

Chegou em casa e chamou pela filha, que estava em seu quarto estudando. Ele fazia questão de acompanhar o que ela fazia, pelo menos quando chegava em casa nas raras vezes que saía mais cedo do trabalho. Ela lhe mostrou os cadernos na escrivaninha que ele achara num antiquário, cheia de gavetas e locais para guardar canetas, papéis e cadernos, além da estantezinha associada. Ela, orgulhosa, ostentava os "A" que habitavam seu dia a dia. Boa aluna, Helena se destacava pela beleza mas principalmente pela inteligência fina e rara. Ele falou da casa que estavam prestes a ter, ela pulou de alegria!
--Uma casa no campo!
--Com riacho, vale e floresta e tudo!
--Não acredito!
--Você a comprou mesmo, Ettore?
Era a voz de sua mulher, com um quê de azedo, uma pitada de descrença, vinda da biblioteca que era seu local favorito na casa.
--Praticamente!
--Já discutimos isto antes...
--Verdade. Mas a casa está em nossas mãos. Vou comprá-la, quero um dia quem sabe viver nela. Você precisa ver! Tem riacho ao fundo, dá para fazer um lago, cheio de patos e cisnes.

Seu tom de voz denunciava o desagrado, mas Ettore estava decidido. Resolveu tudo por telefone e levou as duas a casa na tarde seguinte. Sua posição dentro da agência lhe permitia certas regalias e ele queria mesmo ficar meio longe de seu sócio indignado. Mas em breve, ele faria uma proposta irrecusável a ele e se livraria de sua incómoda presença. Sua filha maravilhou-se da visão do morro, a sua esposa, antes meio arredia, se espalhou pela casa, já dando idéias e palpites de decoração, coisa que ela entendia pelos cursos que fizera quando moça e pelo evidente bom gosto que ela sempre demonstrara. Um carcamano como ele jamais poderia ser tão refinado a ponto de fazer tão belas escolhas como as que tinham em sua casa cheia de objetos de decoração. Ele era prático, de modo que suportava tudo, em nome da boa vizinhança. Era mais um abismo que se avizinhava e ele se dava conta disto. De qualquer modo sua filha adorou e ele disse o local onde colocaria o lago com cisnes, que ela aprovou. Foram os dois, ela com olhos admirados, à beira da floresta silenciosa, com árvores de troncos escuros e galhos que avançavam em direção a eles, respeitosamente mudos em pura veneração.
--Nossa...!
--Que acha?
--Maravilhoso, papai.
--Quer entrar? O proprietário diz que tem uma trilha que ele mandou fazer. Eu não entrei.
--Vamos dar uma olhada?
Em meio ao caminho, um ruído baixo lhes chamou a atenção e quando viam o pequeno esquilo ocupado com uma pinha, se encantaram de vez. Foi o que os fez adquirir o futuro lar de Ettore. Sua esposa, dentro da casa, já conversava com o proprietário como dona da casa:
--Aqui, uma estante para livros. Ali, perto da lareira...

Negócio fechado, animadamente os três conversavam a respeito dos animais que deviam existir por perto, do pequeno esquilo, dos pássaros majestosos, da visão do povoado que eles viam abaixo. Foi uma das últimas vezes em que conversaram os três, tão animados.
Mais tarde, muito mais tarde, ele se lembraria daqueles dias antigos agora mas que decidiram sua vida, dentro de poucas horas, porque quando ele olhou a lareira com sua mulher tagarelando o que podia ser mudado aqui e acolá, percebeu que ali era e sempre fora seu lugar, tamanha a paz que encontrou dentro da casa silenciosa. Sua filha notara seu estado de espírito e com um quê de ironia no olhar, indagou à queima-roupa:
--Quando mudamos para cá?
Notou o olhar meio aparvalhado de sua mulher e o espanto do proprietário.
--Não, Helena, não nos mudaremos para cá. Evidentemente, temos muito a fazer e você estuda na cidade grande, sua mãe tem compromissos e eu tenho um nome a zelar. Quem sabe, um dia?


Alívio geral. A própria Helena se acalmou. Só se ouviam os pássaros lá fora. Piados os mais diversos, no entanto, destacava-se ao fundo o longo piado do falcão sobrevoando a montanha, perscrutando o vale em busca de preciosas presas, quem sabe até o pequeno esquilo que os encantara. Cruel pensar assim, mas é a verdade da vida, um morre para que o outro sobreviva, ele se viu muitos anos à frente sentado ali, olhando pela janela e sentiu finalmente que um pouco de paz poderia conseguir.

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