Ele chegou à sua casa. Tinha ido ao psiquiatra que o orientava, pois tinha estado extremamente ansioso e tenso, de modo que esse lhe recomendara um seguimento. Não suportava mais certas coisas, certos comportamentos de seu sócio que insistia em diminuí-lo a todo o custo e ele se acabava em cigarros e bebida e já de certa forma dependia deles para poder aguentar o tranco. Como podia suportar tal humilhação? Sempre fora um homem correto, honesto e nunca trapaceara ou maltratara alguém, como estava sentindo que lhe faziam. Naquela tarde, ele aceitara o pedido de seu psiquiatra, que estava em voga naquela época, abrir as portas da percepção com a ajuda de certas drogas. Fazia, de certo modo, parte da terapia, por assim dizer. Ele não ia discutir com o terapeuta, precisava se sentir mais livre, mais solto e assim aceitou o conselho de sua amiga, a secretária da agência e procurou o terapeuta. Naquela época, tudo era válido para o autoconhecimento, até as vielas estreitas da percepção dos psicotrópicos. Huxley defendia a idéia de que existia algo mais na realidade que a simples visão do sol ascendendo e ele lera o livro antes de experimentar o que lhe oferecera o médico.
Tinha três filhos e um deles tinha grandes olhos, era inquiridor e apesar de baixo, tinha enorme energia e vontade de aprender. Dera-lhe um microscópio e ele vinha sempre com as novidades que aprendera no mundo infinitamente pequeno. Passava as tardes estudando e vendo os pequenos micróbios que achava nas águas turvas do lago perto de sua casa. Foi o primeiro que viu quando chegou a casa, atordoado pelo efeito lisérgico da substància que tomara no consultório. Ele, pouco afeito ao afeto (sempre fora assim) beijou o menino que o olhou de cima a baixo e notou algo de diferente nele, como se fora uma aura difusa, uma espécie de transe místico.
--Tudo bem, pai?
--Tudo. Você estudou hoje? Precisa jogar mais futebol!
--Fui ao clube hoje, joguei bola e nadei. A mãe nos levou.
--Eles estão dormindo?
--Estão. Eu estou lendo um livro...
--Qual?
Ele então escapava do mundo junto com o filho mais velho, porque ele lhe contava sobre as aventuras do Capitão Nemo em sua jornada pelos mares em vinte mil léguas. Quase pode ver os olhos da lula gigantesca a atacar o barco submarino, quase pode sentir a vibração das algas azuis e fosforescentes a iluminar os caminhos do estranho veículo. Seu filho falava, mas a sua boca tinha uma velocidade e seus pensamentos brotavam decerto de outra parte, de maneira que sua fala era uma, seus pensamentos tomavam forma ao seu lado e ele ouvia os bramidos das ondas do mar de sua psique furiosa batendo no costado do navio submarino.
--Mamãe!
Veio a sua mãe tão desvelada, de seu quarto no apartamento velho mas funcional e grande.
--Que foi?
--O pai está esquisito.
--Não é nada, não.
--Venha cá. Seu pai está cansado, tem passado por vários problemas.
--Aonde?
--No trabalho, filho. Uma hora te conto. Agora quero dormir.
Ele se recolheu ao quarto, onde a cama já fora feita e ele se deitou, inquieto, pois o alcalóide pressionava os muros de seu ego com os conteúdos avassaladores e ele podia ver os olhos de Nemo fosforescendo à distància, em meio à luta com a lula gigantesca; podia divisar os tentáculos á espreita na escuridão do mar, num momento e no outro, divisar os olhos escuros do filho mais velho a espiá-lo, no escuro, preocupados e intensos. O que mais impressionava neste menino, pensava ele, eram seus olhos profundos, o seu siso tão grande para uma criança tão pequena...
--Por que fez isto, posso saber?
--Fiz o quê?
--Você está diferente! Está como se fosse estourar, sei lá; Vocês são todos loucos!
--Tomei algo hoje, o psiquiatra me recomendou. Sabe aquele Thimothy Leary?
--Sei, o tal guru das drogas que abrem os "portais da consciência".
--Pois é, ele se diz seguidor dele e achou que eu devo amolecer meu ego, anular de certa forma meu ego para poder ser mais feliz e quem sabe.
--Quem sabe o quê?
--Você viu aquilo?
Ele apontava para a roseira que milagrosamente brotava no jardim a dez andares, junto com uma solitária tartaruga que insistia em dormir nos cantos mais obscuros da casa sem que eles jamais a achassem de primeira. Ele olhava a rosa e via o vulto da tartaruga, mas era a rosa que ele podia ver e suas pétalas diáfanas eram transparentes e carregava uma mensagem secreta que só ele poderia ser capaz de decifrar, uma miríade de sons que farfalhavam nas nervuras das pétalas e que só ele podia ouvir na maré de alucinações que finalmente o invadia inteiro, de forma acintosa e maciça.
--Como posso descrever a rosa para você?
Os olhos do menino percorriam o quarto semi- escuro onde os dois cochichavam.
--Posso dormir aqui?
--Não, definitivamente, não! Vá para sua cama!
--Mas meu pai não está bem!
--Eu cuido disto. Ele só está cansado. Pare de bancar o bobo!
Sua mãe sabia ser firme e dura e particularmente com ele. Ele abaixou a cabeça e caminhou com seu passo pequeno, preocupado, para o quarto onde jaziam seus tesouros mais preciosos: O microscópio, a luneta, sua escrivaninha simples e sua cama encostada na janela. O livro estava lá, as aventuras das vinte mil léguas o aguardavam, mas ele, sem dúvida, chegou a duvidar da sanidade de seu pai quando ouviu um riso surdo ao fundo. Chegou a pensar que o perderia, de vez, porque não raras vezes o achou mais do que perdido, em meio ao remoinho de trabalho que o roubava de casa. Quase sempre se descobrira sozinho, os sinais que o pai lhe deixava, no entanto, eram inequívocos e maravilhosos. Ganhara um livro que no futuro lhe daria toda a luz de seu talento. Um livro que versava sobre a própria vida e sua diversidade enorme neste planeta, a vida em suas manifestações mais sofisticadas e secretas, desde a célula até os organismos mais complexos. Ele aprendeu a amar o mundo que o cercava, mas mais do que isto, aprendeu a respeitar os limites entre ele e o mundo. O mesmo pai que o presenteara, agora se debatia num febril mundo de ilusões e alucinações que jaziam no fundo de sua alma, visões que talvez o ajudassem a sair da enrascada com o sócio mal-educado. Um mundo era criado por ele em seu quarto, onde passava a maior parte do dia. Seu pai enquanto isso enfrentava seus próprios demónios naquela noite de onde certamente sairia transformado.
Certas coisas acontecem porque queremos, certas outras acontecem sem que saibamos, porém ele sabia que o que acontecia agora era perfeitamente lógico, uma lógica que obedecia a suas pulsões mais vitais. Uma absurda lógica de abjetos quànticos e não adiantava fechar os olhos que lá estava o olhar de Nemo, o diabólico olhar do capitão que dirigia sua vida, o seu sócio gasoso a lhe imprensar nos cantos do quarto, os olhos de seu filho atónito, a roseira se cobrindo de gelo seco...
--Gelo seco!
--Aonde?
--Bem ali nas rosas.
Sua esposa resolveu ligar ao médico. Ele respondeu que seria assim mesmo, seria uma longa noite mas que se ela fosse continente...
--Como assim, doutor?
--Quero dizer que se você estiver perto dele, certamente ele sentirá que você está com ele e que está sendo parte de sua realidade mais intensa e profunda. Isto pode ser avassalador, mas de certa forma, pode ser uma experiência que pode transformar sua vida em outra.
--Ele sabia disto?
--Certamente. Isso foi de comum acordo nosso. Nós programamos isto. Na verdade, mais dia menos dia ia acontecer. Seu marido é um homem rígido, tem a dura carapaça dos que duvidam de todos. Isto talvez quebre suas defesas. Mas fique ao seu lado, eu estarei aqui, pode confiar.
Ela voltou ao quarto e ele não estava lá, saiu como uma louca pelo apartamento e foi pegá-lo no terraço, acariciando as rosas de maneira terna e com olhos fixos. O filho mais velho chorava a um canto, observando o olhar ensandecido do pai que nem deu pela sua presença. Que se passaria em sua cabecinha? Como poderia avaliar a dimensão do estrago?
--Já para a cama! Mania de dormir tarde!
--Amanhã é sábado!
--Já para a cama!
Ele saiu correndo, pouco podia contra as palavras dela. Sumiu no corredor onde, ao fundo, dormiam a sono solto seus dois irmãos mais novos que ele. Eles nunca se importavam muito, era ele que mais se preocupava com a casa, sempre se perguntava se seu pai voltaria naquela determinada noite.
Aquela foi uma longa noite para seu pai e para sua mãe. De certa forma, eles já sabiam disto: Os dois e ele. Ele era o primogênito, deveria saber antes de todos. No dia seguinte, seu pai foi à empresa da qual era sócio e ainda impressionado com o volume de coisas que aprendera consigo próprio, recebeu e aceitou a proposta de seu sócio fanfarrão. Vendeu a peso de ouro sua parte ao exótico camarada. Nunca mais se falaram desde então e olhe que eram mais de doze anos que eram sócios na empreitada que se dispuseram a enfrentar! Foi com um abraço que se despediram. Ettore agora tinha só mais um sócio, porém este era uma questão para outros dias.
Seu pai ficou dias tendo sonhos estranhos e confusos, acordando de noite e sendo amparado por aquela nobre mulher que o ajudou a atravessar os rios da inconsciência.