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cronicas-->Na Outra Margem do Rio -- 19/05/2008 - 20:24 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Como se podem ver as coisas assim, tão claramente, quando se está em meio a um delírio? Era o que se perguntava Otto, enquanto todas as pétalas da rosa de sua alma se partiam e ele via, claramente, o quanto havia faltado à sua família enquanto estava pirado. Entornado, emborcado, à deriva, sonado, todas as palavras vinham, aos borbotões enquanto ele ruminava em meio ao caos dos papéis de seu escritório, agora seu, em uma casa que abrigava sua nova agência, depois de ter seu passe vendido a peso de ouro em uma jogada de gênio de Ettore. Teve vontade de matá-lo, porque assim que ele saíra vários de seus ex-clientes abandonaram o seu barco e ele teve de se virar, como nunca na vida. Com o copo de gin na mão, ele avaliava que se eles o haviam abandonado, certa razão devia ser dada ao seu ex-sócio. Ele se sentia um zero à esquerda e queria dar um fim em tudo, mas pensava no olhar amedrontado de seu primogênito. Seria covarde, seria cruel, seria ilícito pensar assim, só em si, como o carcamano sempre fizera, batendo a mão nos bolsos cheios de talento e dinheiro escondido. De onde ele tirara o capital para arrebatar seu passe e de quebra, ficar com tantas contas que em pouco tempo, pagariam o alto valor da venda de sua sociedade com ele? Duas possibilidades: Deslealdade de seu parceiro (agora rival) ou uma combinação maligna com empresas que de certa forma achavam que ele devia deslanchar sozinho, livrando-se do estorvo de um camarada preocupado demais com a ética. Que é isso, ética, digam vocês, ética não existe, não nesse meio, cheio de víboras, cobras de diversos venenos. O que é ética? Existe a ética do Estado, que permite que pessoas sejam mortas ou presas ou torturadas, não necessariamente nesta ordem. Existe a ética cristã, da irmandade entre os indivíduos, blá blá blá. Existe a ética do drogado e/ou bêbado: Primeiro o meu, depois o teu! Então, o que raios significa esta palavrinha tola? Ele se remoia amargo, mas já não havia tempo, porque precisava ganhar dinheiro, afinal tinha uma família, tinha três filhos, tinha um mundo à frente, tinha o seu destino nas mãos... O copo de gin esverdeado brilhava à luz da luz seca do abajur da mesa extensa onde ele colecionava recortes de suas campanhas. Os recortes mostravam os troféus ganhos há anos, mostravam os sorrisos de uma convivência estranha, os sorrisos mostravam dentes de serpentes sorridentes e falsas ao seu lado, beijando sua mulher ainda jovem. Mostravam sua fama e seus louros, sempre ligados a Ettore, maldito seja. Quem sabe ele não existisse não fosse o carcamano com sua lábia proverbial, não fosse sua ousadia abissal e seus arrotos em público o que realmente conquistara tantos prêmios e assim ele era apenas uma espécie de segunda voz, um ego auxiliar que o ajudava a manter os pés no chão, enquanto viajava com seu caráter destrutivo e grosseiro, dando patadas em quem o ajudara a se fazer como homem, como anunciante de produtos tão diversos como cremes de barbear, loções para higiene íntima, ele já nem se lembrava mais, massas para pizza, cobertores de lã, não importa o quê. O que eles viam nele era um ponto de equilíbrio que servira até então; precisavam do desequilíbrio, pois a civilização estava desequilibrada, pensava ele com seu copo nas mãos e os recortes sendo colocados aos poucos sob o vidro do tampo da mesa de sua escrivaninha. Ah se ele tivesse tido mais tempo, ousaria dizer que o desequilíbrio real ele poderia produzir, só faltara o surto energético que se contrapõe à razão necessária para se manter a fala pausada nas reuniões onde o que ele mais ouvia eram palavrões e tristes comentários. A sociedade se abalara, havia desequilíbrio latente, sequestros, medo e prisões. No entanto, se movia o país, crescia o consumo e o que se precisava era um toque de loucura, de ousadia e de desfaçatez. Ele não tinha isto tudo. Ele simplesmente não poderia jogar tudo para o alto, ele não era assim, simplesmente não se muda da noite para o dia. Seu parceiro, já nascera torto. Adorava dar tiros, adorava dar shows públicos, era demais para ele. O alívio que sentira na hora de receber a parte que lhe cabia do botim das almas que ajudara a conduzir ao inferno agora se somava ao arrependimento de não poder dar um tiro bem na cara do safado, pensava ele, enquanto jogava o copo de gin no chão.

--Que foi? Aconteceu algo?
--Não foi nada.
--Mas, Otto! Tenha calma, faz dias que você está assim. Precisamos agir se não quisermos morrer de fome. Somos sócios agora, lembra?
--Lembro. Lembro sim, mas eu tenho a maior parte. Por favor, não entre aqui e me diga o que devo fazer. Por favor, já não aturo mais isto!
--Quer que eu lhe deixe a sós?
--Com certeza. Permiso?

O colega, assustado com a energia que vinha daquela sala, saiu e fechou a porta suavemente. Mas não sem antes ouvir um sonoro "merda!". Quem ele pensa que é afinal? Temos de agir, temos de correr contra o tempo, faturar a grana que faltou agora que as grandes campanhas se foram. Agora somos um time que tem de ser esforçado. Pelo menos é o que ele pensava quando saiu da sala do furioso camarada que quebrara um copo no chão, mais uma vez. Copos custam caro ainda mai quando quebrados toda hora! O outro, furioso, se olhava no espelho: Como não pudera ver tanta perfídia, tanto comportamento estudado? Como cedera tão rapidamente a um comportamento perfeitamente maquinado, lucidamente orquestrado pelos dois que o queriam longe, para poderem galgar postos mais poderosos, quem sabe até campanhas oficiais, que pagavam bem aos que bajulavam o sistema opressivo instaurado no país. Quem sabe? O que ele sabia, e sabia bem, era que a raiva que sentia era pelo que não faria mais do que pelo que havia feito. Agora nada mais era certo em seu rumo. Seguira seu coração, seus impulsos ditados pela lisérgica viagem que seu psiquiatra orientara seguir. Para quê? Para entregar de mãos beijadas todo um mundo ganho com seu suor, suas noites de insónia e seus pesadelos recorrentes?

Um sonho que sempre tinha era o de chegar a casa e tentar entrar, morto de fome e sede, depois de um dia a mais como foca de um jornal onde trabalhava no centro da cidade; chegar e não poder entrar, pois sua mãe não lhe dava , assim como ao seu irmão, o direito de ter chaves da casa onde moravam. Isto porque, segundo ela, poderiam trazer gente que levasse os bens da casa. Isto porque era fria, calculista. Ele sempre tinha este sonho quando se sentia vilipendiado. Chegava à sua casa, tentava entrar pela porta, pelo muro, pela janela e outras entradas. Nunca conseguia, como em sua sofrida vida de antes. Subempregado, esfomeado, com sede e fora de sua própria casa. Haveria de esperar por horas, até que ela chegasse e abrisse as portas do paraíso, para que ele pudesse ao menos tomar um banho, uma sopa, pegar as poucas coisas que tinha e as ordenasse, não sem antes sentir raiva da mulher mesquinha que a mãe encarnava à perfeição. Seu pai, esse ficava horas fora. Trabalhava para outro jornal e forjava os tipos da edição do dia seguinte em chumbo. Isto custava horas e o mais que aquele imigrante queria era ficar longe de sua esposa complicada e ciumenta. Pudera, ele lhe dava motivos para ficar cada vez mais paranóica. Que história! No entanto, este era mais próximo aos filhos e lhes contava as histórias da Alemanha. Histórias que seu pai havia lhe contado sobre o rio Danúbio, onde fora marinheiro e servira na Marinha local.

Otto sabia de suas neuroses. Sua esposa olhava suas olheiras e se preocupava. Ele não dormia, não conciliava sono. Sempre preocupado, sempre procurando uma saída, quando a saída lhe fora apresentada aos próprios olhos pelo olhar assustado de seu filho mais velho. Ele o seguia sempre, como que o avaliando, avaliando se poderia se aproximar dele, avaliando qual o peso de suas palavras junto ao pai em seu mundo desolado, estanque e complicado. Seu filho mais velho lia com fúria, lia com a fome dos que querem o Conhecimento, todo o possível. Ele lia como se fosse a última coisa que pudesse fazer. Devorava tudo que lhe caía nas mãos, claro que para o que poderia ler para sua idade. Tinha uma dicção perfeita. Seu defeito era achar que seria adulto demais, até mais do que poderia ser. Isto irritava Otto, quando ele lhe mandava jogar futebol e sair com os amigos. Pudera, ele queria dar aos filhos a qualidade que não pudera ter de sua família original. Porque isto teria de ser replicado? As pétalas da rosa, os flashes, o horror! Seu peito o acordava na noite atroz e ele sabia que precisava relaxar, senão nem o que sabia fazer de melhor poderia exercer, quanto mais conviver com suas verdades interiores escancaradas!

(Uma rosa: Você a olha, ela tem diversas faces. Seus estames, suas diversas tonalidades. O interior de seu intestino, o exterior de todos os males, a boca de um alaúde a tocar as sonoridades todas de seu abismo interior. )

Estaria ele enlouquecendo ou o que o médico lhe dera abrira as portas de uma floresta inexplorada, ainda virgem, dentro da circularidade de sua alma? Ele acordava com o sabor das pétalas na boca, o cheiro do sumo das flores de seu pequeno jardim de inverno ainda ressumando as manhãs outonais. Otto se comprazia de nunca haver sentido um medo verdadeiro, mas agora tudo se confundia, o sorriso de sua bonita mulher e suas faces rosadas, a língua rosada de seu filho colando os selos das cartas que ele mandava para os clientes que queria repatriar, a rosada língua da tartaruga a remoer um pedaço de vermelho tomate em seu quintalzinho nas alturas... A rosa que seria somente uma rosa, como o disse um rosacruz, para confundir mais ainda sua cabeça, assim de chofre, sem que ele dissesse nada:

--Sabe o que é uma rosa?
--Não, mas...
--Pense nisso: Olhamos a rosa em sua plenitude, em sua essência, em suas cores; aspiramos seus perfumes e ouvimos suas dores, porém uma rosa não passa de... Uma rosa. Somente isto!

Malditos ocultistas, sempre falando a linguagem cifrada de suas seitas. O Inconsciente falando através de símbolos ocultos, os sonhos exaustivos de caminhada, de lugares em que nunca estivera; as explorações que jamais faria. Tudo que ele queria era dormir. Dormir o sono dos justos, para poder trabalhar no dia seguinte, para recuperar o tempo perdido.

--Que cara, Otto!
--Não dormi de novo!
--Desse jeito... Não é melhor dar um tempo daqui?
--Nem pensar. Neste momento, não. Dê-me um tempo você: vamos à caça!
--Você está ficando igual ao carcamano.
--Vamos aproveitar o melhor do pior. Vamos peidar em público, arrotar na cara do cliente, soltar um cachorro bravo atrás do próximo incauto! Quem sabe conseguimos?
--Olha...
--Estou falando sério. Precisamos soltar as rédeas. Somos certinhos demais. Os tempos mudaram: Tem gente batendo na porta, tem guerrilha na selva e a gente aqui querendo fazer propaganda de dentifrício? Porra! Vamos azucrinar!
--Como faremos isto?

(Têm espinhos as rosas. As vermelhas escuras lembram a morte, seu cheiro de perfume acre também lembra o amor dos amantes em suas pétalas ressecadas em páginas de livros marcadas. Os espinhos fazem sangrar os dedos que as manipulam sem cuidado. As rosas envenenadas, as mutantes rosas de Hiroxima, as rosas arroxeadas e raras, as azuis da fria pátria do Norte, as roseiras da casa da avó, onde se escondiam seus ovos de páscoa. Os ovos em sua origem, a fertilidade absoluta. O sorriso de sua avó em seu jardim secreto!)

--Pai!

Seu filho tivera mais um dos sonhos que o ligava indissoluvelmente a ele, as pétalas deixando seu rastro na casa. Já Otto, se afundou no trabalho e com afinco, criou nova clientela. Surgiu um novo mito. Ele admitia que havia de ser mais que seu mito antecessor, mas as rosas que despetalou foram as mais suculentas de sua vida.

--Seu pai está no trabalho. Volte a dormir.

Ele ia se deitar, sabendo agora que seu pai colhia os frutos no jardim que soubera plantar dentro de si próprio ou que jamais soubera que havia em sua vida interior. Sabia agora que os adultos sofrem mudanças. Como ele, seu pai visivelmente não era mais o mesmo. Porém, o que o reconfortava era saber que ele estava, pelo menos aparentemente, mais feliz e consciente de seu papel em casa. Naquela hora da noite, jamais poderia encontrar sequer o espectro de seu pai em casa. Então ele caía no sono, embalado pelos olhos de sua mãe que lhe transmitia, no mínimo, a segurança que ela sabia não ter dentro de si, mas aparentava ter. Uma mulher de coragem! Dizem que os grandes homens sempre as têm por perto. Muito mais tarde, ele saberia dar valor àquela que serviu de guia à família que se formava e que crescia em ruídos e cores diversas em suas manifestações. Como as pétalas dos sonhos dos dois, as rosas desabrochavam no jardim do alto do prédio velho e seguro.
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