O suave gotejar nas telhas da casa enchia seus ouvidos de beleza que lhe lembrava sua pureza de outrora. Mais do que isto, seus ouvidos recordavam os sons particulares que sua casa emitia: O estalo da escada em caracol de madeira que ficava entre a cozinha e a sala, que surgia ao menor movimento, na passagem de qualquer pessoa ou nos dias de muito frio ou calor. Era como que uma pessoa zangada e mais de uma vez o assustara, fazendo-o pensar em alguém caminhando lentamente em sua direção, escada acima, quando ele se escondia embaixo dos lençóis quentes que o sufocavam e abrigavam, numa volta ao útero primordial que ora o chamava de volta. O ruído da campainha do telefone e os passos apressados de sua mãe, pequena e ágil e bela nos olhos e coração. Ele podia ouvi-la atendendo apressada o telefonema, quase num sussurro para não acordar os meninos que dormiam escada acima.
O telefone!
Ele podia ouvir as cristalinas notas que escorriam entre seus olhos, num toque colorido. Tantos já ouvira! Todos os tipos de campainha: As estridentes, como gralhas estabanadas; as campainhas sutis, como a do apartamento em que encontrava sua mais fogosa amante. A campainha insistente de seu escritório, como a apressá-lo, lembrando os compromissos que já não desejava nem aos outros. A campainha do telefone em que recebera a notícia da morte de seu velho pai: funérea, cinzenta, aziaga. As cristalinas notas enchiam seus ouvidos. Devia atender? Para quê? Para deixar as gotas que escorriam em suas telhas, em seu cérebro que alçava vóo nas horas mais estranhas, quando ele podia ver a distància que o separava de si mesmo? A nota alegre do telefone que sempre vinha de sua filha, com um quê de mistério e agitação febril. Como saber se a pessoa que ligava poderia estar apenas querendo incomodar? Já se perguntara isto várias vezes ao estender a mão e pegar o aparelho.
(Não atende. Não adianta; não me parece bom. Devemos investigar? Sim, mas com a chuva toda, pode ser que... Está bem, está bem, vive sozinho, mas... Está doente, sabemos... Bem, bem... Eu me preocupo. Não, não o que você pensa, sinto simpatia pelo homem. Não adianta, devemos... Esperar? Pode ser tarde.)
A Estação da Luz: Um homem vem ao seu encontro.
--Posso ajudar?
--Pode: Sou novo aqui!
--Que gostaria de saber?
--Onde arranjo um lugar barato para morar?
O homem tirou o chapéu e lhe disse que ali perto havia hotéis baratos, mas que alguns eram puteiros. Ele conhecia um que era familiar e recomendou o seu nome. Ficava no Centro da cidade e ele caminhou com a força e velocidade que sua fome de vida lhe dava. Na recepção, o telefone tocava, porque a moça não atendia?
--Pois não?
--Espero você atender o telefone.
A moça pegou o aparelho e olhava para ele enquanto dialogava sussurrando, como se do outro lado já soubessem que ele iria chegar. Ele se assustou porque ela sabia seu nome e do outro lado alguém a instruía a respeito dele. Ela falava dele como um velho conhecido e ele pensou não é possível, ela sabe tudo de mim?
--Tudo se sabe aqui, meu jovem.
Atrás dele, estava o homem de jaqueta que ele vira no trem que o trouxera a São Paulo. Um tipo escroque, o nariz adunco quebrado em lutas escusas, o sorriso da moça ao fitar suas roupas simples, um quê de deboche ao mascar o chiclete, será o hotel certo?
--Quarto 122. Aqui estão as chaves.
--Ótimo. Quem lhe falou de mim?
--Ele sempre fala dos novatos que chegam a São Paulo. Recomendou que lhe tratasse bem: É novo por aqui, não?
--Sou do Sul.
Ela olhou maliciosa para ele, num olhar que podia significar mil coisas, menos interesse em saber de onde ele vinha ou o que viera fazer na cidade. O olhar do escroque atrás dele lhe incomodou, mas ele viera decidido a vencer num território desconhecido. Tinha a vida pela frente e mal podia esperar quando pusesse a cabeça para funcionar no trabalho na agência que o convidara. Seria amanhã de manhã. Tinha de repousar, queria causar a melhor das impressões. Novamente o estridente telefone, a moça atende e olha sua mala e ele instintivamente agarra a mala e pega a chave de cima do balcão. Não, não precisava de ajuda, era forte, magro e podia muito bem cuidar daquilo sozinho! Carregou a mala e a sacola com seus anúncios até a porta do elevador, atentamente observado pela moça de batom vermelho nos lábios e a pinta que lhe dava um ar vulgar perto do lábio inferior. Ela tinha um belo sorriso, mas seus olhos traíam noites insones. Um anjo de olhos argutos, a calcular o tamanho de seus sonhos e talvez algo mais. Ele foi gentil e sorriu de volta. Subiu no elevador que tinha um perfume adocicado e era lento, seu quarto ficava no décimo andar. Ele chegou e abriu a porta. O corredor escuro iluminou-se de repente e ele pode ver um vulto fugidio ao fundo, esforçou os olhos, mas foi só uma impressão, pois nenhuma porta se abriu. Ele abriu a porta de seu quarto e viu a cama de lençóis limpos e dois travesseiros, um convite à lascívia? Pensou na moça da recepção. Sangue italiano! Um porta-chapéus o convidava a ter um e de manhã, antes de ir ao emprego novo, compraria um que pudesse pendurar ali: Seria sua primeira ação em solo paulistano! O primeiro tostão gasto e imaginem, num chapéu, cor cáqui ou marrom claro ou seria melhor cinza? Uma boina talvez? O certo é que ela tinha endereço certo ao fim do dia, ficaria pendurada enquanto ele olharia pela janela e descortinaria todos os dias de sua vida futura da janela grande, com vista para outros prédios. Tocou o telefone do quarto. Teve de atender e a moça lhe perguntava se tudo estava em ordem. Claro que sim, ele respondera e ela, mas tudo mesmo? Ele sim, tudo mesmo. Ela insistia, mas tudo que precisa e foi aí que ele entendeu que ele precisava de algo a mais e ela lhe dissera que folgava a partir de tantas horas de modo que...
(Não adianta. Deve estar quebrado, a tempestade... Sei sei, bem sei. Mas que posso fazer? Tenho de averiguar. O vento foi muito forte, a enxurrada que desceu foi forte: Ele, mais uma vez ajudou. Bem sei que ajuda bem mais que isso, mais de uma família daqui sabe. Todos lhe são gratos em troca de sua solidão... Espero mais um pouco? Ah... Sim, sim, melhor avisar. Tenho o telefone... É. A pintora famosa. Ela mesma, faz tempo que não vem, andaram meio afastados todos depois que... Bem, deixe para lá. Olhe, vou avisar. Espero? OK. Aguardo então.)
O corpo dela aquecia sua alma e era perfumado de modo que adormeceu depois da longa noite de delícias, uma recepção e tanto para ele que mal pisara as ruas e já conquistara um coração de pequena. Era um exercício que aprenderia pouco a pouco: Conquistar corações e mentes com seus largos gestos e mãos grandes e rudes de quem já ajudara o pai a cavar a terra e tirar o sustento dela. Suas mãos fortes envolveram os quadris da bela moça que comentara entre outras coisas sobre a rudeza de suas mãos e como elas lhe agradavam: Os vincos profundos que a vida marcava nelas a trouxera para uma outra dimensão, ela se sentira frágil nas mãos daquele moço de belos olhos castanhos e cabelos descuidados, ela se sentira partir em duas ao ser possuída por ele, navegara as águas do Paraíso e agora passava suas mãos nas dele que repousavam perto de seu rosto ainda marcado pela infància não muito longínqua. Decidiu ali que era melhor não roubá-lo como lhe ordenara seu chefe, o escroque de nariz quebrado. Não, um tesouro deste não se perde, cultiva-se. Ela decidira mantê-lo protegido. Saiu da cama, experiente que era em sair sub-reptícia na calada da noite e à luz do néon que pulsava, viu o contorno de seu corpo e olhou o seu, maravilhada com o que sentira e que quase esquecera. Ele conseguira despertar o que ela achava que perdera. Pensando assim, foi ao banheiro e lavou o rosto, saciada como poucas vezes e viu as marcas do tempo se aninhando lentamente, a pinta sob seu lábio. Jogou pela janela a cópia da chave do quarto que serviria para abrir as portas ao furto. Urinou prazerosamente, limpou-se e foi ao quarto semi-escuro onde dormia seu anjo. Deu-lhe um beijo na testa e saiu do quarto, fechando a porta dele por dentro. Ele havia lhe dito que de manhã tinha um compromisso dos mais importantes, devia deixá-lo dormir e ele ressonava lentamente. Mandou-lhe um beijo através do escuro que atravessou a bruma do impossível e se alojou bem na boca do moço que agora conhecia sua intimidade. Ele se mexeu lentamente, sentindo formigar o lábio, num sonho de estranhas luzes, de estações que se abriam, de portas que se fechavam, de vozes desconhecidas que murmuravam a Palavra Esquecida e que ele recordava agora, numa poderosa corrida de cavalos e corcéis prateados, ele e ela nus nos campos verdes do Senhor, na pradaria onde cometeriam o ato que seria a nódoa dos tempos antigos, ele escutava o lento desabrochar das águas do riacho que se avolumava com as nuvens de chuva que enchiam suas cabeceiras.
Ela fechou suavemente a porta e disse entre dentes:
--Até nunca mais, querido!
Ela sabia que ele havia vindo e não havia motivos para cercear sua vida nova e cheia de luz e força. Estaria com sua lembrança para sempre agora: Sempre sentiria suas mãos decididas em suas ancas, sempre que pudesse lhe procuraria, mas quando se ama de verdade, melhor deixar livre o objeto de seu desejo. Estaria ali, sempre esperando por ele, nas tardes quando chegasse cheio de idéias malucas, sempre estaria ali na porta do hotel onde trabalhava, com o sorriso malicioso cheio da certeza de estar para sempre comprometida com ele, seu noivo imaginário. Uma questão de experiência, claro. Ao chefe diria que era um pobre coitado, que nada tinha no bolso (o que já averiguara não ser verdade) e que o que tinha de tamanho não tinha de juízo. Para não dizer que não tirara nada dele, arranjou uns trocados de um que lhe devia e deu ao escroque como prova do botim que não houvera. Isto certamente satisfaria o idiota. A si mesma, diria que era melhor continuar secretamente satisfeita, na humilde espera que sua função permitia.
Ele acordou do sonho estranho e olhou onde estava: Olhos o fitavam e ele pensou, onde estão os campos verdes do senhor? Onde os cavalos prateados e os dois nus? Porque se achava calado agora, imóvel e confuso? Quantos olhos o olhavam agora! Despertou finalmente e olhou o relógio: Hora de levantar, hora do banho. Olhou no espelho e viu as marcas do tempo se avolumando, já era homem feito e depois desta noite saberia que era mais homem ainda. Barbeou-se lentamente, tomou o banho que precisava e aonde ela se olhara ele se fitou, dando uma olhada à cama desfeita que abrigara uma noite de amor memorável para o novato.
(Vamos mandar. Sim, agora que parou de chover, vamos subir... Perfeitamente, eu entendo. Vamos eu e o cabo Aragão. Talvez tenham de averiguar também os telefones, mais de uma pessoa já disse que o vento foi o diabo lá em cima. Sim, sim, a casa está lá e tem luz. Só não tem movimento. Tenho de ir agora. OK.)
A torneira gotejava lentamente enquanto ele se vestia para se apresentar no trabalho que o chamara de tão longe, ele já tinha histórias a contar dali em diante. O suave gotejar da torneira lhe lembrava os telhados da sua casa de infància, de sua mãe lavando as mãos na pia da cozinha, bela mulher de olhos doces e fortes, na espera do pai que chegava cansado do campo e que pedia o repouso necessário e que ela lhe trazia: os chinelos que ele pedia e a sopa que todos tomariam juntos em breve. Ele se lembrou dos verdes campos do senhor, das pradarias do sonho da noite cheia de murmúrios; lembrou-se de seu pai agradecendo antes de comer e ele lhe agradeceu a graça de ter sido filho dele, pela arte de ser forte como ele e de poder ter ajudado sua família a levantar-se da terra e aparecer ao mundo.
Lembrou-se do chapéu que teria de comprar e faminto, desceu o elevador, saindo pela portaria, não sem antes fitar nos olhos a moça que o recebera tão bem em sua casa estrangeira. Já podia dizer que era homem agora e podia gritar ao mundo; havia, porém algo maior esperando por ele lá fora e dirigiu-se à luz que o esperava com seus segredos e burburinhos.