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cronicas-->Ponto de Vista -- 23/09/2008 - 18:13 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tudo depende do ponto de vista. Da janela onde moro, a moça parecia normal. Eu vivo de bicos, estou sempre observando as feras que andam por aqui, neste antro que é o Centro, mais de lado do que o nó górdio da questão. Lá a gente anda e esbarra em pequenos loucos de esmalte e pó, olha para os lados e vê um monte de gente encolhida e submissa. Nas paredes dos prédios as marcas dos velhacos que escalam os cantos para deixar nomeadas as suas tribos e no chão os restos da festa imunda com pedaços de carne roída, lixo e guimbas de cigarro... Pois sim. Mas a moça era uma bela figura, meio que achada na luz fria do poste que ela usava como anteparo para a sua parada, se é que me entendem. Ela sai de madrugada e como não durmo (não consigo, é tanta gente que fala que parece que é dentro de minha cabeça, impressionante...) eu a via sair como uma rainha de cupim, cheia de asas diáfanas.

--Parece que não sabe de nada. Não se enxerga não?
--Como assim?
--Para você, filhinho, mas nem que me pagasse o dobro!

Gostava de humilhar. Parecia uma égua, grande mesmo, pernas compridas e um brilho na testa que ela insistia em carregar, dizia ser um rubi e depois vim a descobrir que era bijuteria mesmo que ela trocava sempre que sujava porque o verdadeiro ela guardava a sete chaves. Ela dizia que a avó lhe dera um anel com a pedra de presente e ela guardava a gema para a aposentadoria.

--Ela sempre me dizia, "um dia você ganha a pedra que foi de seu bisavó, um anel que parece misterioso!"
--E você?
--Que anel que nada, derreti mesmo e a gema me fita de longe. Bem guardada...

Ela adorava a dança do ventre e seu número preferido nas noites dos quartos que eram suas moradas tinha este nome. Todos pediam e ela impressionava pela sua cupidez, sua lascívia e seus olhos mostravam que ela gostava do que fazia e era bem feito. Eu a achava normalíssima; tinha um amigo que se derretera por ela, mas sempre ouvia dela a clássica tirada:

--Vê se te enxerga!
--Como assim?

Juntava gente para ver a sua dança nos meios esfumaçados onde ela balançava suas ancas antológicas, de figurar num guia dos prazeres. Pena que era o que eu tinha, parecia ter alguma cultura mas tudo se esfarinhava na hora em que ela, grossa como só ela, espantava o velhote que sequer chegasse perto:

--Se enxerga! Não tenho muleta não, não sirvo de guia nem tenho andador em casa!

Como disse, tudo depende do ponto de vista. Nunca entendi porque ela detestava tanto uma pessoa mais velha, um cara meio que à meia idade, mesmo um quase moço de seus quarenta e poucos. Não suportava de jeito nenhum! Só depois, quando tudo o mais se esclareceu, é que eu tive a idéia de lhe perguntar e pensar a respeito. Ela me disse, de chofre, que havia sido abusada por ninguém menos que seu padrasto. Outros vieram com ele até que ela saíra de vez de casa e abandonara qualquer pretensão de ser alguém de respeito. Do ponto de vista dela, estava certíssimo, do meu então, não tinha do que reclamar. No entanto...

--Me deixem em paz!

Seu grito foi ouvido longe. Daquela vez, eu vi tudo da janela como sempre, meio a contragosto porque eram quatro da manhã e lá estava ela, sob seu poste, escolhendo a vítima para sua dança sensual, quando chegaram dois grandões e a achacaram. Via-se que mal falavam sua língua e ela que entendia menos ainda tentou se desvencilhar. O que eu vi foi daqui do alto e era um brilho, sabe? Não sei o que foi que eu vi, dois segundos depois foi a correria e vozes que chamavam por socorro, minha musa jazia deitada olhando o poste de baixo; de seu ponto de vista tudo se esvaía. Ela me olhava de baixo para cima e minha visão turvava-se pelas lágrimas que corriam e os soluços dela eram os meus porque eu a amava de verdade, minha princesa de asas translúcidas, a dona de meu rubi desesperado.

Seus últimos estertores simulavam um gozo e assim se foi minha amada: entre jorros de luz seca e jatos de sangue feito gemas a brotar de seu colo despedaçado.
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