Suscitou-me certa feita de que deveria eu incluir nos meus legados um memorial para meus descedentes e amigos ainda que, bem poucos. A inspiração não veio ao acaso. Estando eu terminando a leitura de Esaú e Jacó, obra-prima Machadiana, senti-me estimulado à escrita de um memorial tal qual aquele citado pelo autor em sua obra. "Nos lazeres do ofício escrevia o Memorial, que apesar das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis". Revirando meus alfarrábios, para o meu deleite, encontrei o tal livro: Memorial de Aires.
Já faz alguns dias que, entre uma e outra viagem de metró na metrópole paulistana, quiçá fosse a barca de Petrópolis, venho lendo o memorial e hoje, exatamente hoje me dei conta de que estava lendo os acontecimentos do mesmo dia e do mesmo mês que ocorreram com o Conselheiro Aires, porém no ano de 1888. Aqui vão minhas letras - não mortas ou escuras, ainda vivas, talvez para sempre!
J Brito
2008
12 de maio
Já fazia algum tempo que não me vinham inspirações, tais como essa e para não perdê-la, transcrevo-a "ipis líteres" mais adiante, porém não como chegou à minha imaginação, pois devido à falta do exercício da escrita, levei um certo tempo para apará-la. Contudo, leitor, talvez não lhe sirva para nada, mas se servir, tome-a: "A riqueza se compara à superfície do mar que ao sabor do vento se acumula e logo se vai, tudo, tudo, volta-se como era antes, tudo plano tal como um grande espelho, como se o vento não existisse."
Com efeito, me apossei de uma frase Machadiana, que a mim serviu: "As palavras podem dar sentido à dor e podem produzir um efeito calmante sobre ela". Creio que o seu autor não lhe desse tanta importància assim quando as transcreveu para o papel, mas para mim me caíram muito bem, de modo que já sinto seus efeitos, ainda que miúdas e rareadas palavras, transcristas sobre um papel do século XIX.
Manhã fria e cinzenta na Paulicéia, até parece inverno, mas ainda estamos no outono. Apresso-me para chegar ao trabalho, meu novo, trabalho. Ops! Novo, mas não muito, afinal já se vão quase trinta anos de trabalho bancário. Quem diria! Voltar a ser bancário típico. Explico: bancário típico, anda de metró, de ónibus, usa bilhete único, mochila nas costas, fones de ouvidos, dois empregos, estuda à noite, paga prestação de casa própria, prestação de carro, cartão de crédito parcelado, almoça no restaurante por kilo, usa cheque especial, etc. Como cheguei a essa situação?Digo depois, mais adiante.
Amanhã, uma data importante, 13 de maio - Dia da Abolição, registrado com entusiasmo pelo Conselheiro em seu Memorial, não sendo maior o entusiasmo por razões diplomáticas e emoções contidas.
E pensar que já se foram 120 anos de alforria e pouca coisa mudou para os negros deste país gigante no tamanho, mas pequeno, muito pequeno na justiça social.
Hoje, dia 12, um dia sem registro no Memorial do Conselheiro. Sem nehuma pretensão, dou iníciou ao meu. Talvez, para ficar nos anais da minha história como mais um de tantos acontecimentos com o número 12, que já chegou há mais de uma centena até quando me cansei de contar, registrar, contar para os amigos... e agora, não falo mais, Ã s vezes escrevo.
Meu filho Daniel, nascido em um dia 12, chegou no último fim de semana dos Estados Unidos, depois de uma temporada de estudos em música na Lynn University. Formou-se em mestrado com louvor, talento e sacrifícios. Não pude comparecer à formatura, uma oportunidade perdida e jamais recuperada.
Veio me visitar no Banco Real onde trabalho, assim como antigamente fazia quando eu trabalhava no Banco BNL na Av. Paulista. Almoçamos, mas antes trouxe-me um presente: os fones de ouvidos acompanhados de um mínusculo aparelho que toca músicas em formato mp3. Foi uma surpresa o presente que eu desejava, mas para economizar alguns trocados não queria por ora comprar.
Agora, sinto-me como um bancário típico completo de mochila nas costas e ainda posso usar os fones de ouvidos durante as viagens de metró onde tenho reparado que cada vez mais há mais e mais pessoas usando os pequeninos fones de ouvidos. Talvez seja apenas uma moda passageira, mas talvez seja permanente. Pergunto-me qual é a razão de tanta gente querer tapar os ouvidos? Pode ser desejo de privacidade, mas pode ser também uma busca de alívio de estress, de distração para as mentes tão carregadas de preocupações, etc., etc.
A hora já é passada. Uma nova alcova me espera.
13 de maio
Hoje à noite Daniel nos visitará em nosso novo endereço, diga-se de passagem, endereço nobre: Rua Anália Franco. Estamos, minha esposa Eliana, minhas filhas Bianca (15) e Luíza (11) de casa nova há poucos dias, digo, de apartamento típico para a classe média, 3 dormitórios e 1 suíte.
O dia da Abolição está terminando e não houve comemoração, pelo menos não reparei em nenhuma. Completamos 120 anos de alforria, deveria haver comemorações, não?
14 de maio
Ontem, em casa, tivemos uma noite inesquecível. Uma noite de festa com a presença do Daniel. Quanta alegria! As meninas são se continham de tanta felicidade e ele, amável como é, dava sua atenção, tocava piano, fazia brincadeiras, distribuía sorrisos, enfim, momentos inesquecíveis e registrados em nossas almas.
25 de junho
Faz mais de um mês que não escrevo uma palavra neste Memorial, pensei mesmo em eliminá-lo de uma vez por todas e isto teria sido tão fácil, bastasse que houvesse um clic em uma tecla do computador e pronto, ele desaparecia para sempre, como se jamais houvesse existido e isto me fez refletir e concluir o quanto é fácil e simples destruir, desfazer, eliminar, principalmente quando se trata de "mundo virtual", algo criado pelo homem do século XX que nem ele mesmo sabe ainda lidar e certamente causará muitos danos em muitas vidas até que ele, o homem moderno e evoluído, aprenda a lidar com sabedoria esse admirável e novo mundo.
Neste lapso de tempo tantos fatos se sucederam na minha rotina corrida contra o tempo, o qual faço questão de esquecer que existe, porque traz com ele as sombras da velhice. Houve também momentos vividos de intensidade imensurável e como disse Fernando Pessoa "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem"... posso afirmar: quanta verdade há nesta frase!!!
15 de setembro
Julho já se foi, agosto também, setembro chegou e isto me faz lembrar de uma música que diz; quando setembro chegar... quero estar junto a ti. Uma letra de música romantica para outros tempos, pois hoje quase tudo é diferente e quase tudo é descartável, até mesmo o amor. Epa! Estou entrando em uma seara onde há muita controvérsia e opiniões diversas. Poderia escrever um imenso livro sobre esse assunto, melhor deixá-lo para outra oportunidade.
Estamos indo muito bem nas paraolimpíadas, mas nos jogos olímpicos da China, fizemos feio. O Brasil já faturou medalhas de ouro em quantidades nunca vistas dantes e o incrível que se vê, ou melhor, que não se vê é comemoração por parte da população. Fico estarrecido e indignado com isto. Deixo aqui o meu registro e os meus efusivos parabéns aos atletas olímpicos e principalmente paraolímpicos, grandes exemplos de superação e determinação.
Graças a Deus tenho estado muito ocupado ultimamente no meu trabalho. Note, amigo leitor, que esta é a primeira vez que menciono a palavra Deus, advirto-lhe que o farei muitas outras vezes, portanto se isto não lhe apedece recomendo-lhe fechar este livro agora e doá-lo para uma biblioteca ou para um amigo ou até mesmo para um inimigo. Portanto, falando sobre Deus quero lhe dizer que tenho vivido experiências incríveis nesta área, a área da espiritualidade, o mundo invísivel o qual poucos conhecem e muitos ignoram, muito embora sabem, sentem, percebem que tudo à volta foi antes criado, imaginado no mundo invisível de alguém.
Tenho aprendido a andar pela fé a acreditar no que não vejo e isto tem me levado a rever minha tábua de valores entre eles... meu legado. Durante muito tempo acreditava que deveria me esforçar para deixar património e riqueza para meus filhos como forma de "garantir" bem estar e conforto. Hoje, isto não faz parte das minhas preocupações, passei então a me preocupar com meus exemplos e minhas atitudes que servirão de inspiração para meus filhos e poderão norteá-los em suas vidas. Isto sim passou a ser importante para mim. Tornar-se uma pessoa cada vez melhor a cada dia passou a ser minha razão de existir, de modo que ao deixar este mundo, tenho certeza de que o deixarei melhor do que o encontrei.
25 de setembro
A primavera chegou, mas faz frio na Paulicéia e os paletós, casacos e jaquetas ainda não voltaram para o armário. Estamos próximos de mais uma eleição e as promessas e os canditados continuam os mesmos a inundar a mídia televisiva.
Há uma atmosfera de "apesar da crise externa" e da bolsa em baixa, tudo está bem no país da diversidade de cultura, natureza e de povos mansos. Tudo muito apropriado e ajustado.
Estamos vivendo um "boom" no mercado imobiliário sem precedentes. Apartamentos que valiam pouco mais de 100 mil reais, quase dobraram de preço nos últimos meses. Lançamentos é o que não faltam. Um novo padrão tomou conta do mercado: apartamentos com grandes varandas incluindo churrasqueira exclusiva. Estou vendo o dia em que hão de anunciar: compre uma varanda de 100m2 e ganha um apartamento de 130m2 grátis. Não sei onde isso chegará... até quando o mercado irá aguentar imóveis com preços estratoféricos. Receio que poderá haver um "crash" assim como ocorre atualmente no mercado norte americano.
Devo confessar que embarquei na nova onda, mas não foi por opção, melhor seria. Foi mesmo por falta de opção. Tivemos, por necessidade financeira, que vender o nosso apartamento de endereço "nobre", Rua Anália Franco. Até que eu gostava do apto sem varanda, mas bastante amplo, inclusive os banheiros. Acho que vou sentir saudades deles. Os vizinhos não eram lá muito amistosos. Nas tardes de domingo o sol invadia meu quarto calorosamente e me aquecia enquanto eu tirava um cochilo. Foi bom enquanto durou.