O copo balançava em sua mão, cheio de líquido amarelo, o cachorro engarrafado como falara Vinícius. Ele pensava em tudo o que fizera até então. Ele estava em sua casa, sozinho, pois suas filhas haviam saído e sua mulher trabalhava. Ele se sentia só, mas tinha a si mesmo. Sentia-se abandonado, mas sabia que estava cercado de carinho e amigos.
Sua cachorrinha era uma bela companheira, ele a levara para passear num parque recém-inaugurado perto de sua casa. Não gostara porque era ainda muito cru, havia poucas árvores ali e o sol batia seco nos caminhos de cimento. O animalzinho morria de sede e bebeu água em suas mãos em concha!
"A literatura é um meio de expressão, um modo de ver a vida, uma maneira de enxergar as coisas de uma forma diferente; talvez você devesse sair à caça de seu verdadeiro talento".
Essas palavras ecoavam em seus ouvidos, pois sua amiga lhe dissera isto há pouco tempo e olhe, ela tinha autoridade para dizê-lo: Escritora, uma fera mesmo no que fazia, ela lera seus textos e gostara do que lera. Gostara tanto que resolvera chamá-lo a participar de um grupo de escritores do qual fazia parte.
Ele resolveu escrever sem perda de tempo e redigiu um conto curto que narrava a vida de uma moça...
Que se chamava Hortência e que vivia em uma pequena cidade à beira do Rio São Francisco. Uma cidade que tinha uns cinco mil habitantes e ela se sentia tão sozinha porque adorava escrever e não havia ninguém ali que pudesse admirar o que ela escrevia com tanto talento! Seu tio, o Edmundo, o pouco que lia dava para o gasto mas tinha pouco entendimento para a profundidade das coisas que Hortência criava. Então, Hortência ia à biblioteca e lia como se fosse alimento, como se fosse comida o que havia ali, alimento para sua alma ainda jovem. Hortência costumava ficar até tarde, até quando o bibliotecário vinha apagar as luzes e a achava ali, entretida com os livros e textos.
--Sua mãe não estranha não, minha menina?
--Carece não. Ela está ocupada demais para isso!
--E tem alguém em casa agora? Quem é que vai vir pegar você?
--Preocupa não. Ando pelas ruas meio escondida, ninguém me vê!
--Está bem, deixo você ficar mais meia hora. Daqui a pouco tenho de fechar, minha menina.
--Obrigado!
Lá ia ela navegando pelos mares de Moby Dick, a bocarra da baleia e os gritos do capitão praguejando:
"Maldita baleia; pelos demónios, pelo inferno, pelo Maelstrom, ela não levará meu barco!" e ela se deliciava com aquilo tudo. Noutro livro, via as Reinações da Emília e sua turma, o Pedrinho e sua esperteza, a Narizinho e sua vivacidade, coisa que ela tinha e sabia de cor... Na verdade, ela queria tomar pó de pirlimpimpim e sumir dali, para conhecer uma grande cidade...
--Como é que vosmecê vai fazer isso, menina? Sair daqui? Como? Tem mais é de se conformar, é aqui mesmo que há de viver até o último dia, quando se arrependerá de ter dito tudo isto. Agora, pegue essa vassoura e dê uma varrida no quintal que os porcos deixaram imundo e também jogue milho para as galinhas que alimentam a família.
E Hortência pegava a vassoura, mas não dobrava a espinha. Respeitava sua mãe, mas sabia que havia algo mais reservado a ela. Dia seguinte lá estava ela na biblioteca, pegando mais um livro cheio de idéias novas e horizontes infindos.
--Caramba, como é que essa menina perdida nesse fim de mundo vai sair afinal de sua vida? Pós muito peso nos ombros da pobrezinha!
--Ela há de resolver; sempre há uma saída e você sabe disto.
Então ela lia sobre as histórias de Hércules e quase podia ver o herói fazendo seus doze trabalhos, músculos retesados e duros, o suor escorrendo da testa enquanto mata a Hidra com suas cabeças que renascem a cada estocada e então ela entende: Não adianta ficar dando murro em ponta de faca. Tem é que fazer um plano e tem é que juntar as forças que tem e criar sua própria saída. Ela tem onze anos e uma fome de vida absurda pelo mundo.
Sua professora nota em sua aluna um ser diferenciado e a ajuda a criar em suas composições uma forma de expressão que até ela mesma desconhece. Reconhece na menina um talento que ela achava que tinha, mas não, o talento é da menina, nasceu com ela e ela se sente honrada de poder fazer o polimento desta pedra preciosa que nasceu à beira do caudaloso rio São Francisco. Mandava os textos da pequena escritora ao jornal da cidade sob pseudónimo de Araceli. Logo Araceli se torna a colunista mais lida do jornal e todos a querem conhecer pessoalmente. A professora diz que a conhece e que em tempo oportuno, vai apresentá-la à s pessoas. O diretor do jornalzinho, um homem rude com os empregados, é o primeiro da fila: Quer saber quem é a autora de tais e quais contos e cronicas que enchem sua coluna de luz e mistério.
Ele balança o copo de uísque, satisfeito agora porque sente que as coisas se encaminham para um fim. Parir um conto é quase como ter um filho; você não sabe aonde ele vai parar, você não tem idéia do que ele fará sozinho nas ruas, você sabe apenas que ele nasceu e está pronto para a vida; Ele ouve Strangers in the Night, com Frank Sinatra em plena forma. O gelo derrete em sua boca enquanto ele saboreia o momento...
...que finalmente chegara: o momento de revelar ao mundo quem era Araceli, a autora dos textos maravilhosos. A professora a chamou, a um canto, e apresentou a autora dos belos contos e cronicas que povoavam a vida da pequena cidade, dando o que falar a todos os que as liam por dias.
--Hortência, aceite meus parabéns! Você tem um talento ímpar para esta cidade. Vou falar com seus pais e vou lhe conceder uma bolsa de estudos para que você possa nos mostrar até onde pode chegar este talento maravilhoso!
Assim falou o prefeito, um dos mais ávidos leitores de Hortência e um de seus maiores admiradores.A mãe de Hortência viu seu rebento receber das mãos do prefeito o diploma e chorou quando viu os olhinhos dela brilhando; quantas vezes ralhara com ela por passar tantas horas na biblioteca da cidade, fuçando o ela jamais poderia entender, caminhando por mundos que ela apenas entrevia. Via com orgulho nascer ali uma personalidade que saíra de dentro dela e já tomava forma sozinha, assim caminhando pelas próprias pernas, que ela vira correr à beira do Rio entre as pedras onde ela calejava as mãos para lavar a roupa dos pequenos que o marido trabalhava muito e não via as crianças com frequência. Quantas vezes a sonhadora menina tinha seus devaneios abreviados por sua seca voz; como se arrependia disto agora que, orgulhosa, via sua filha subir ao palanque para receber o diploma de cidadã da cidade e de quebra, receber a promessa de uma bolsa que a faria crescer em seu talento e qualidade. Os irmãos a olhavam boquiabertos, a luz iluminando os cabelos crespos da pequena que orgulhosa, erguia o canudo em direção a todos, como a benzer a cidade com seu talento.
--Muito bem, tem de ter qualidade, tem de ter vida, tem de parecer convincente. Ela é apenas uma menina, mas seu texto nos dá uma idéia de sua luta; seu texto a humaniza, isto lhe traz raízes, ela pode existir afinal. Conheço umas histórias parecidíssimas com a dela; eu mesma tive uma colega que abandonou a escola de engenharia Elétrica e passou a escrever textos para jornais e revistas; em pouco tempo os pais tiveram de render louros à moça que se tornava dia a dia mais famosa...
--Por acaso é sua história?
--Mais ou menos.
--Então você tem um quê de Hortência!
--Talvez! Mas então, que me conta dela?
Ela saiu da cidade que aprendera a ouvi-la. Ela saiu da vida seca que levava e passou a estudar na capital e mandava cartas e mais cartas para sua mãe e seus irmãos. As cartas eram lidas em voz alta pelo irmão mais velho:
"Hoje, vi o mar. É muito, muito maior que o Rio que banha nossa cidade. Ele não tem fim, para onde quer que se olhe, lá está o mar. Sopra uma brisa dele sempre ao fim do dia, uma brisa fria, úmida, que refresca a gente...Mãe, você tem de ver um dia onde o Rio vai dar, todo rio tem uma foz, e a foz do Rio fica aqui perto...A foz de nosso rio é no mar e parece um leque, enorme quando vista do alto como eu o fiz, andando de helicóptero, algo como uma bolha de vidro que voa como um beija-flor ou coisa assim, imaginem eu dentro vendo o Rio que banha as margens de nossa cidade chegando aqui e trazendo partes de vocês a mim, nos odores e aromas todos que um rio pode ter, trazendo em seus sedimentos todo o sentimento do mundo e das pessoas por onde ele passa...Mãe, você precisava ver o por do sol daqui. Estou olhando para ele agora e quero deixar registrado o tom do horizonte, algo entre azul e vermelho, a bola do sol iluminando as nuvens de um brilho suave, daqui onde estou, posso ver que meu rumo mudou mas vocês estarão sempre em meus pensamentos...Sempre saberei quando o João está acordado, sempre saberei que meu pai chega tarde do trabalho duro no campo cansado e com fome. Nunca esquecerei que vocês são minha origem, minha família afinal...De que serve tudo se não temos a quem recorrer em momentos em que precisamos? Olhando o mar, olhando o céu eu posso saber que tenho uma origem e uma finalidade; nada é por acaso, saibam disso!"
A família então se reunia para a prece do jantar e todos deixavam o prato de Hortência ali, porque mais dia menos dia ela voltaria com suas histórias mirabolantes.