Número do Registro de Direito Autoral:131420484528174500
A VIÚVA E O SACRISTÃO. (crónica)
Ana Zélia
As portas todas fechadas. Uma única aberta, a Casa de Deus.
Contrita adentra sem licença e vai direto a Santa Rita, lhe roga em preces:
" MINHA SANTA RITA DOS IMPOSSíVEIS, nasceste numa quinta-feira, neste mesmo dia fostes batizada, crismada, andaste, casaste. Por favor, preciso urgente de um marido. Roga a Deus por mim, protetora que és das viúvas desamparadas".
O sacristão que a tudo ouvia, esconde-se por trás da imagem de São Benedito e fala:
" Vá pra casa. Crie vergonha! Onde já se viu vim à Casa de deus dar trabalho à pobre Santa? Milhares rogam a Ela em preces, pedindo-lhe os mais absurdos milagres. E agora tu vens e pedes um marido. Crie vergonha!...
A viúva assustada volve os olhos ao altar de onde viera a voz e diz:
__ Só podia ser você. Eu não lhe pedi nada, porque nada tens a dar. Dizem que transformou comida em flores, eu duvido. Portanto, fique em seu canto.
Chorou, chorou e saiu.
No dia seguinte a ladainha agora é ao santo casamenteiro:
"MEU SANTO ANTONIO CASAMENTEIRO, arranja bem depressinha um marido pra mim, eu te prometo adorar-te a vida inteirinha!...
O sacristão vai mais além e desta vez usa o Cristo do altar:
"não é possível. Faz muito tempo te dei um marido, com igreja e tudo. Só levei embora quando se disse cansado de estar ao seu lado. Agora voltas e como abelha sem rumo zumbe aos pés dos santos, rogando a eles, nada mais, nada menos que outro marido. Paciência tem limites...
A viúva olhou ao Cristo e respondeu:
__ SENHOR! Por que me falas assim?
Dizeste que todo aquele filho que a Ti viesse em preces, podia pedir não só um, mais mil, dois mil quantos pedidos fossem. Tu atenderias desde que o fizesse com fé. Eu não acredito. Do Senhor. Não!...
Eu não estou pecando quando peço aos santos um marido. Cansei de viver sozinha. O leito frio falta-me o cobertor. Chorou, chorou e saiu.
Desesperada vai a São José, ajoelha-se e roga em preces:
MEU QUERIDO SÃO JOSÉ, foste o escolhido por Deus para marido da Virgem que seria sua Mãe na terra. De um ramo que trazia floriu lírios, símbolo da pureza, eu preciso de um marido!
O sacristão, tirando casquinha, retorna a São Benedito e fala:
MULHER! Vejo que nada tens a fazer em casa, quem sabe nem cachorro crie. Retorna a teu lar, tenta ali encontrar o que buscas.
No dia seguinte, a viúva vai direto a São Benedito, ele que por duas vezes lhe dirigiu a palavra, deve estar sem fazer nada, quem sabe possa ajudar e diz:
"Perdoa-me Santo negro se ti ofendi. Sabes o quanto é difícil a um ser ser viver sozinho. Se vim aqui é porque um dia encontrei nesta casa, amor, paz, proteção, vida. Comunhão a dois, tantos... Meu saudoso marido fora daqui sacristão. Passou a vida inteira zelando por todos daqui. Enquanto eu ficava em casa curtindo a solidão.
O sacristão afoito imitou a voz rouca do morto.
"__ Mulher! Por que reclamas se desta igreja tirastes tudo?
Meu amor eu dividi entre ti e o Cristo. Pensava que fosses feliz e que com minha partida, pudesses viver do meu amor, lembranças. Sexo não é tudo. A vida é bem mais que isto, ainda continuo aqui de onde nunca saí.
A mulher atónita quase desfalece, mas encontra forças e a todo pulmão grita:
__ É você quem fala querido marido! Há coisas que mesmo morto deverias saber. Enquanto dividias teu amor com o Cristo, eu para não morrer de tédio, dividia com outro.
Um abastecia a velha geladeira, me dava carinho. Com tua partida se foi também. Fiquei sozinha. Nesta casa já ouvi de tudo, mas o único traído aqui és tu.
Hoje o sacristão tenta a todo custo ficar no lugar que foi teu, mas de tudo isto cansei. Quero um marido só pra mim, sem dividi-lo nem com Deus nem com ninguém. Cansei!...
O sacristão ouvindo tudo aquilo, desmaia. A mulher o vê, o padre o socorre, ele volta a si e como louco corre, corre. Quem sabe à sua casa, evitando assim, ser ele o próximo traído. Coisas da vida.
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Apresentado no programa de rádio em 03.10.1993
Sou apaixonada pelo estilo de cronicas, a viúva e o sacristão é o elo mais forte entre o sofrimento, suas causas e seu grito de socorro. Ana Zélia