Carregando sua própria mochila cheia de pessoas inventadas e as mesmices do dia coladas no céu de sua boca, já não sabia se havia sido alguém que avisara que ela morrera atropelada ou fora uma alucinação que persistisse, uma voz vinda do Nada absoluto, naquele dia fatídico em que ele, depois do choque, fitara o espelho de sua vida partida e sem reação alguma, murmurara perplexo:
--E agora?
Caminhando como um sonàmbulo, entrou no prédio em que pensava morar e onde sonhava viver com ela mais dias felizes, agora cinzentas recordações de um tempo abruptamente recortado da história de seu viver, sem permanência alguma.
--Silvério! Chegou alguma carta?
O porteiro o olhava entre contristado e constrangido, com cara de pouco saber, mas com o olho de quem sente no outro a dor imensa que transborda pelas gotas do suor e pelas mãos cheias de esperança de que, sim, chegasse uma carta dela. Mas como?
--Não, senhor. Não chegou nada.
Então ele sabia, cada vez mais convencido, de que ela se fora, que partira de vez de sua vida; Sim, ele sabia e não havia como negar que estava só, ainda agora e para todo o sempre. Pior era o agora, ligar a televisão e olhar sem ver coisa alguma, só os movimentos na telinha, a vaga lembrança dos carinhos dela em seus cabelos, o perfume vindo de seu corpo, os lençóis quentes das noites de luxúria.
--Mas como? Como ela me deixa assim? Não avisou, nem nada!
Sem aviso, sem piedade, só o telefonema avisando de que o inominável acontecera, ele olhando o espelho, ainda com a idéia de que a briga começara em casa e terminara de modo atroz.
--Meu Deus: Que foi que eu fiz?
Como se tivesse tanta culpa; como se estivesse à direção embriagado, na hora do rush e enraivecido, invadisse a calçada e arrastasse com sua raiva todos os que estivessem em seu caminho; como se isso pudesse salvá-la agora.
Copo de vinho na mão, o vinho barato que comprava com o dinheiro do trabalho fingido, a risca de luz quebrando o escuro do quarto, o cigarro acumulado em meses de cinzeiros.