Já não escrevo faz algum tempo e nestes dias andei pensando se havia algum tipo de bloqueio, foi quando fui falar com minha analista e ela me disse que a energia que se prende se torna em algo mais sutil, como se fora um corpo físico e eu, mas como, um corpo físico e ela, sim, algo sutil, mas com corpo, se pensamos em alguém não sentimos sua proximidade? Sim e eu pensei em minha mãe cantando na área do apartamento e senti que ela estava tão perto que quase podia tocá-la e ressurgiu meu passado como num lampejo de farol, viu? Ela disse e eu dei razão, então se deixei de escrever este corpo etéreo que é o não-escrito pode se tornar um corpo físico, sutil, mas não irreal, uma presença que se plasma à s outras presenças como se fosse uma fantasmagoria e os personagens nem especulados podem adquirir vida própria, daí eu escrever de novo, pois sinto sua existência de simulacros abandonados sendo lentamente refeita e as linhas de seus destinos ligadas à minha de maneira que saí do consultório mais leve, pesando uns oitocentos quilos a menos fui a um pequeno bar já olhando a bela moça que se sentava sozinha a um canto, certa de não estar sendo seguida e lá estavam meus olhos quando vi que ela pediu um licor de cacau( sei ler os lábios, era muito discreta) e olhou para mim num sorriso leve e encantador, viu, ela me disse, você já imagina as coisas e pode ver o invisível, e eu sou meio fraco nestas coisas de amar, de me sentir amado, sempre tive meus problemas e ela, está bem, pode se vitimizar, mas não é o que realmente você quer ou deseja e eu, como pode saber o que penso se nem externei minha idéia e ela, com a taça de licor, eu sei o que pensa porque sou uma estranha personagem e era mesmo, tinha mechas avermelhadas nos cabelos, um olho azul,de doer a vista, belos seios e mãos irrequietas como se ela esperasse alguma coisa de mim e eu comentei, belas mãos e ela, são de pianista. Ah você toca piano? Tocava sim, mas nos últimos anos dói demais tocar, quando eu teclo minha alma vem à tona, já não sei se Chopin, se Beethoven, se Bach; Toca todos? Sim, mas como disse, tocava e agora? Dou aulas, ninguém vive de um piano de cauda se não der aulas para se ter o que comer e então? Quero ver este piano, que marca, ah é um piano velho, mas foi de minha mãe que tocou em uma orquestra húngara e sei lá como ela trouxe o piano ao Brasil, está vendo, meu bem? Não sei a marca, só sei que as notas são langorosas, saem de minha cabeça e se plasmam nas cordas vivas de minha juventude, ah é? Pois eu escrevo e tenho quase que certeza que você é minha personagem, como assim? Eu sou gente como você, ah sei, e por que este olhar tão triste, poderia se encaixar perfeitamente em minhas páginas esquecidas, como assim? É que eu escrevo, esqueço onde guardo e depois de muito tempo vou achar o texto e ela rindo, como é? Sim, esqueço das páginas, você deve ser uma destas personagens que eu esqueço por aí e que resolvem se tornar fujonas, volte para meu livro de idéias, ah ah ah como você é louquinho, sou mesmo mas quem usa cabelos vermelhos é você, isso eu fiz ontem, gosta? Te dá um ar de maluquinha extremamente sensual e atraente, gosta de licor? Sim, principalmente de cacau e também de menta, amarula, licor de cereja. Não suporto destilados, nem eu, odeio gente que fica falando de Ballantines e afins, somos dois então, pois é, mas você não fuma, está louco, quero durar quinhentos anos, eu já nem tanto, oitentinha já me bastam, ah é muito pouco, é merrequinha de tempo, ah ah ah, já subiu a bebida, sim eu sou sensível e você é escritor, porque não escreve um conto mais direto, ao invés de ser tão covarde se escondendo atrás da literatura e tentando realizar tudo aqui que não consegue na vida, ah então é isto o que pensa de escritores? Não, só falei para te provocar, mas não deixa de ser verdade, eu acho que meio que criei um mundo e você acho que faz parte dele, está me achando com cara de andróide? Não e se fosse, seria uma bela aquisição, você não é um não? Desses que se vendem por aí e saem trepando com as humanas feito doidos e depois querem casar e ter filhos e coisa e tal, claro que não sua boba, sou de carne e osso, você é que é a Maria Fujona, volte para meus livros, vamos fazer um acordo, você volta e eu te deixo ser a mulher mais feliz do mundo, com direito a castelo, chofer, marido rico e amantes idem, mas volte depressa, eu hein, você endoidou, precisa voltar mais à terapia, você acha, ah com certeza e ela pega o telefone que abre sua tela holográfica e deixa entrever um vulto que a chama e ela ilumina seu rosto comum com um riso certeiro; Jack, play it again, ela nunca olharia assim para mim sequer uma vez, bom, tenho de ir, fica mais um pouco, volta para meus livros, ah deixa de besteira, vou encontrar meu namorado, e vou ao cinema assistir ao filme desencontros, quer vir? Não, hoje realmente não posso, mas gostei de conversar com você, tem uma esperteza linda, linda é você, está bem, mas preciso ir. Levanto da mesa depois que ela se foi, dois copos de licor vazios pontilham nosso encontro fortuito. No piano o gaiato toca adeus amor e eu de lado lhe faço um gesto que ele responde, uai, não foi desta vez, haverá outras, muitas outras, tantas que eu não saberei se o que criei já se voltou contra mim ou se o piano que toca é o dela, as notas langorosas...