Querida, não poderíamos tentar o tempo que nos resta apanhar o tanto que nos falta da existência praticando a arte do perdão?
Por exemplo, que me perdoe as falhas de caráter, o fato de beber absinto nas horas vagas de nossos vagos dias em que ainda ousamos nos encontrar no labirinto de nossa casa.
Também que deixe para lá meus vóos cegos na infinitude das tardes de Outubro, olhos espessos e baços, me esqueça num canto e espere um pouco.
Eu poderia então esperar menos de suas ondas de cólera, sua boquinha retorcida num esgar de impaciência e ironia, num muxoxo de superioridade que beira o pedantismo infantil.
Também poderia relevar suas vinhas e azedumes e suas iras sem retorno. Querida, será que se pudéssemos, haveríamos de nos esquecer as mágoas e ressentimentos, abertamente, sem nenhum temor, águas passadas? Despudorados, mediríamos nossas diferenças num jogo de olhares infames trocados do alto da escadaria que leva aos quartos, sua bunda empinada desafiando a gravidade e a altura soberba numa afronta irresistível.
Que tal o convite? Cheira a falsa reconciliação ou beira a insània de um gozo interminável e ainda se torna possível desbravar sentimentos que sob camadas de culpa, medo, solidão e tortura moral, nos afligem como pequenos pesadelos de rotineiras mesmices?
Pequenos demónios; render-se a eles nos torna menos humanos, ceder a eles nos torna reféns de soturnos encontros com nossas naturezas paralelas.
Deixe para lá a tristeza dos desencontros e a marca de ferro da infàmia, sejamos humildes servidores de Eros e não da concupiscência; sejamos eternos amantes e não dependentes do ópio da solidão que nos cerca a todos. Temos a nós mesmos, jamais nos bastaremos. Busquemos além das aparências que inibem nossas vozes na áspera noite da verdadeira redenção. Busquemos em nossas bocas mais que o fel que espezinha nossos sonhos.
Pratiquemos a arte do Amor, o da verdadeira entrega que se sublima e se torna fonte e finalidade em si mesmo, sem espera nem tempo algum para terminar.
Por que não, querida? Olhar o passado, mesmo o mais recente, só nos abre as feridas. Nada mais de adocicadas bebidas que nos afastem um do outro, somente a fruição de nossos sentidos, o tocar das peles aveludadas, os dedos percorrendo os caminhos de nossas costas, cada nó se parecendo com o infinito, mesmo que o tato nos confunda com outros dias já idos.
Eu poderia então esperar menos de sua grosseria e você esperar menos de minha tendência ao repouso intrínseco. Seríamos obrigados a galgar o Olimpo e desafiar os risonhos deuses em sua eterna primavera. Você poderia me deixar em meus vóos cegos e se deixar levar no tremor da luz que redefine os mistérios do dia que chega com o sol inigualável.
Que tal?
Quebre as taças de vidro de casa, abra a cristaleira e arremesse contra mim o mais fino copo guardado de nosso relacionamento. Bata-me. Ata meu pulso à mesa sob as vistas da assustadiça cadelinha. Porque não? O que nos prende mais, a raiva, o não-dito, a rotina, a quimera, o medo da partida, a espera, o fogo da paixão?
Exerçamos nosso direito, nosso dom de existir. O mais puro desejo não se compara ao milagre de estarmos aqui, um diante do outro, as mãos unidas num mágico gesto de ternura.
Só assim, livres de nossas amarras, poderemos voltar ao nosso ninho maravilhoso, onde nos esperam os frutos sagrados de toda uma sagrada era.