Nossas primeiras compras juntas: uma paulista inexperiente, uma cearense míope, uma mineira de "belzonte" e uma carioca como eu (só que naturalista). Reunimos nossos tíquetes - espécie de vale que pouco valia - e rumamos para o supermercado mais próximo do apartamento onde moraríamos pelos próximos dois anos e meio. Caminhávamos tagarelando pelo barro brasiliense, para quebrar a tensão da pouca convivência e do medo do desconhecido.
Tinha vinte e dois anos e até então sempre morara com minha mãe e irmãs. Era a mais tagarela de todas. Trajava minha primeira calça jeans com lycra, presente da irmã já formada. Modéstia à parte, era magra e a calça me caía bem. A blusa era verde escuro, curta, expunha minhas poucas curvas.
Depois das compras, sob estrita vigilància da calculadora de bolso, saímos repletas de produtos de limpeza, cuidadosamente distribuídos em sacolas de papel entre as quatro. A divisão de tarefas, de forma equànime, seria nosso lema dali em diante.
Sobraçava meu quinhão, sorridente, contando piadas, feliz pela liberdade vigiada e pela promessa de um futuro promissor.
Ao chegar ao apartamento, contudo, verifiquei que minha sacola estava úmida, bem como minha calça.
Ao descer o olhar, acompanhando o trajeto das gotículas, constatei, consternada, que a água sanitária traçara uma destruição silenciosa em minha calça nova - e única. Chorar seria prova de fraqueza e ridículo apego material. Mas fiquei arrasada. Que fazer? As manchas subiam à s coxas e alcançavam a bainha. O jeito era cortar short e aposentá-la para minhas idas à Escola Superior de Administração Postal, como se destinava. Minha irmã ficaria triste também. Fizera um crediário para mim.
Tentei levar na esportiva, troquei-me, vesti minha roupa de faxina e acompanhei o ritmo frenético de minhas colegas de lida na ànsia de manter brancas paredes e chão. A calça? Nem como short! Desisti de salvá-la. Formada, com salário decente, poderia comprar outras.
Aprendi na pele - ou na segunda pele - que podemos cometer graves falhas. O que não devemos é nos deter nelas. A paulista parecia frágil, mas era uma fortaleza. A cearense, de Fortaleza, era míope, mas enxergou bem seu amor, quando cruzou seu caminho. A carioca, naturalista, voltou à s origens, casou-se, teve um casal de filhos. A mineira, um mês depois, alugou uma vaga para morar sozinha e estudar à noite. Eu? Nunca mais tive calça jeans de lycra e passei a tomar mais cuidado ao transportar água sanitária.
Mas continuo errando muito.
Conheci pessoas maravilhosas, com quem convivi e até hoje guardo doces lembranças de um tempo que não volta, mas volta e meia me vem à recordação. Trazem-me risos aos lábios. Lágrimas nos olhos. Um aperto gostoso no coração.
P.S.: Texto alusivo a uma experiência malfadada, vivida nos idos de 1988, em Brasília, no Guará II.