Na maior parte do tempo é uma indignação velada. Às vezes mascarada por um dia-dia recheado de banalidades, tapinhas nas costas, música ruim, comida a quilo, fraturas expostas. Mas dentro arde algo de inexplicável força e singular beleza. Mas quando distraídos podemos não perceber e simplesmente esquecer. Balde de água fria que tem nome e sobrenome: Cotidiano da Silva. Supermercado, trabalho, prestações de coisas inúteis que pagamos com orgulho vazio, mas que serve por hora; o carro, o som do carro, as rodas legais do carro; as roupas, as marcas das roupas, os acessórios legais das roupas. E o tempo indo. Brincalhão. Sacana. Inapelável. Inexorável. Inoxidável. Blasé. Algumas vezes durante o dia me pego em frente ao computador olhando á 10 minutos pro nada pensando: o que to fazendo aqui? O que ando fazendo da minha vida? E dói o estómago, e dói a alma, e dói o cruzado de direita invisível que levo de minha própria consciência. É um auto-soco abstrato. Sinto-me culpado de toda bagunça, de toda merda do mundo. Olho pro lado e me vejo cercado de vampiros amarelados que há anos não sabem o que é sol, carregando camisetas do Che Guevara ou Renato Russo ou Red Hot Chili Peppers, All Star surrado no pé, cabelo desalinhado, ah, fazendo aquele tipinho doidão/intelectual/descolado/estúpido, levando pra passear pra lá e pra cá um livrinho do Dostoievski ou Paulo Coelho ou Neruda. Preguiça. Das 8 da manhã Ã s 8 da noite ficam dentro de ambientes com ar-condicionado, luz branca, baias que os isolam do mundo, submersos em seus afazeres pra no final do mês ganharem notas pra comprarem coisas inúteis. Minha nota é zero, mas fico ali como eles, porém pirando algumas vezes durante o dia por ser assim, por estar assim, podendo, em momentos pontuais até matar por uma cerveja gelada. Pelo quê os vampiros matariam, hein?
Porque insistimos tanto no erro? Porque nos enganamos conscientemente assim, sem ao menos duvidar? Porque ficamos nesse estado de letargia sem ao menos levantar a voz uma vez sequer e gritar sem vergonha? Será que no leito de morte teremos orgulho ou só uma insuportável vergonha de tudo? Felicidade não pode significar somente um bom emprego, uma casa própria, um carro na garagem, uma viagem por ano á Guarapari. E as coisas invisíveis? E a porra da natureza, do ornitorrinco, das focas, do mico leão dourado, do burro de carga? E os livros não lidos, os textos não escritos, os lugares não visitados? Porque será que nos esforçamos tanto para compra uma TV dessas achatadas, mas não fazemos porra nenhuma contra a fome do mundo? Nosso egoísmo nos é mascarado de nós por nós mesmos no momento em que chamamos isso tudo de meta. Está ai configurado o auto-engano, o auto-boicote. Enganamos-nos com o sucesso financeiro, achando que o auge é o topo de uma montanha de dinheiro. E por dentro vamos definhando, ficando ocos, misturando e metabolizando sucesso com desperdício, vomitando logo em seguida mentiras que só enganam a nós mesmos. Também to cansando. Queria me importar menos, sentir menos, alegrar-me mais facilmente, fazer piquenique sem achar isso a coisa mais estúpida do mundo. To sempre de ressaca e isso ta me deixando confuso, sem paciência. O álcool na dose certa te deixa bem, na errada sombrio. To bem sombrio. Faltam-me bolas pra sair por ai, deixar toda essa loucura indecente pra trás, me livrar dessas amarras que causam amarguras, deixar cair no caminho as máscaras que usamos pra nos identificarmos com as máscaras usadas pelos outros. Tornar-se livre de fato, sentir o sabor da liberdade, a leveza de uma vida mais simples. Talvez não precisamos mesmo de muito mais que o básico, pois acredito que é bem aí que se encontra a simplicidade, e com isso mais calma, tranquilidade, paz de espírito, sossego, e por fim a tão falada, discutida, procurada e ansiada felicidade. Porque essa merda se esconde tanto assim? Parece que faz birra. Cheia de exigências e regrinhas pra dar o ar da graça. Parece esses cantores famosos que exigem 100 toalhas brancas com a textura do cú da mãe, 18 sapatos lustrados pelo rabo de um coala albino da Malásia (ps: o engraxate tem que ser canhoto, vesgo, mínimo quinta série e gostar de um rabo de saia e rabo de galo). É assim. To parecendo um velho aposentado em que a única distração é jogar dado, sozinho. E ainda insisto, vou forçando a barra. Ainda me restam forças...