Ronald Soares
A morte de Russomano me foi antecipada na quinta-feira, 14 de outubro, pelo seu filho, Victor Russomano Júnior, pois na conversa que mantivemos pelo telefone, afirmou-me que estava de saída para Pelotas, porque seu genitor estava morrendo. Tentei estabelecer um diálogo otimista, mas incisivo como sempre, disse-me ele que daquela vez não havia qualquer esperança. Naquele instante, já senti um forte abalo.
Assim, a ocorrência do episódio final da vida do memorável juslaboralista, ao cair da tarde do domingo dia 17 de outubro, foi apenas a confirmação daquilo que o filho me havia dito.
Logo pensei na morte das estrelas, na sua implosão nas vastidões escuras e remotas do universo numa imensa montanha de luzes e fulgores.
Russomano era uma das mais fulgurantes estrelas de primeira grandeza!
O meu primeiro contato com o autor Mozart Victor Russomano ocorreu há mais de quarenta anos, quando ainda acadêmico, li e estudei com o auxílio dos seus Comentários à CLT, escritos no verdor dos anos do Mestre de Pelotas.
Depois, através do Dr. Cícero Ferraz, conheci pessoalmente o Ministro Mozart Victor Russomano, por ocasião de um dos memoráveis Congressos Internacionais de Direito do Trabalho, realizados sob a coordenação de Osmundo Pontes no Centro de Convenções de Fortaleza.
Dali em frente, formou-se entre nós uma amizade duradoura e sólida, caracterizada por uma admiração constante ao jurista, ao orador de escol, ao magistrado culto, ao escritor de prosa recheada de poesia, ao professor emérito, ao intelectual mundialmente conhecido.
E nas idas e vindas nos diversos congressos pelo Brasil afora nos encontramos e conversamos incontáveis vezes.
Desejo registrar um bizarro episódio acontecido em Teresina, onde fui juiz do trabalho durante treze anos. Éramos, Russomano e eu conferencistas do evento, patrocinado pela seccional piauiense da OAB. O professor Celso Barros Coelho ficou encarregado de fazer a apresentação do ministro. Em determinado momento, embarafustando os papéis em que anotara o currículo resumido de Russomano, começou a falar coisas que não correspondiam aos fatos realmente marcantes da vida do mestre gaúcho, inclusive, apontando-o como simpatizante das esquerdas. Russomano olhou para mim, balançou a cabeça e murmurou: o magistrado do qual ele está falando, na realidade, não sou eu. E quando lhe passaram a palavra, logo após agradecer, aduziu: "ouvindo as palavras do Professor Celso Barros a meu respeito, lembrei-me de uma anedota que costumo contar para os meus auditórios. Num velório, escutando atentamente os oradores, a viúva segurava a mão do filho. Cada um deles exaltava uma qualidade do falecido: bom cidadão, próspero comerciante e quando o derradeiro iniciou a falar das qualidades de bom marido e excelente pai de família, ela puxou o filho pela mão e disse em voz alta, vamos embora, meu filho, esse defunto não é o nosso". E então arrematou: "eu, na realidade, não sou o magistrado do qual o Dr. Celso Barros tanto falou".
Escusado dizer que o auditório riu muito da inteligente intervenção do mestre Russomano.
Por feliz coincidência do destino, eu me encontrava em Brasília, participando de um evento na CNTC, patrocinado pelo Tribunal Superior do Trabalho e, ao mesmo tempo, lançando uma plaquete sobre o tema Sindicalismo, com apresentação de Calheiros Bonfim, quando Russomano fez um emocionante, poético e inesquecível comunicado, no meio de sua conferência, sobre a publicação de sua aposentadoria no Diário Oficial da União, justamente naquele dia, fazendo alusão ao belíssimo pór-do-sol de Brasília, traçando um elo entre aquele espetáculo da natureza à página final de sua vida de magistrado, de uma forma tão elegante como ele só sabia fazê-lo..
Em dezembro de 1999, aceitando convite feito por mim, Russomano veio a Fortaleza para receber a comenda da Ordem Alencarina do Mérito Judiciário do Trabalho e participar do lançamento do livro em homenagem a Aderbal Nunes Freire, do qual fui um dos coordenadores e ele o prefaciador.
Hóspede do luxuoso hotel Gran Marquise, a convite de viúva de seu grande amigo Osmundo Pontes, genitora do proprietário do hotel, sobre o tamanho da suíte que lhe foi destinada, comentou: "Ronald, a Cibele me colocou num verdadeiro latifúndio urbano".
Naquela ocasião escreveu no meu exemplar do livro: "Ao Caro Ronald, ex- corde, Mozart Victor Russomano. Dez - 99 Fortaleza".
No prefácio do mencionado livro, ao final, lançou o seguinte: "Quando o Dr. José Ronald Cavalcante Soares solicitou minha participação nesta obra, na verdade, ele esperava um prefácio. Estou dando-lhe, entretanto, algo diferente, que, por isso mesmo, resolvi intitular de página de saudade.
O essencial é que deixei em relevo a solidariedade e a estima que me uniram a Aderbal Freire, durante decênios, sem que entre nós existisse, jamais, a sombra da desconfiança ou do desentendimento.
Reconheço, igualmente, que a minha prosa se derramou em demonstrações de afeição aos cearenses e ao estado do Ceará, isso, também, seria grato à Aderbal.
Penso, enfim, que ficaram visíveis meu apreço pelo homem, minha admiração pelo jurista, meu entusiasmo pelo professor e meu afeto pelo amigo.
E dessa forma dei testemunho da perene presença de Aderbal Freire na história do Direito do Trabalho brasileiro, na história cultural do Ceará e na modesta história de minha própria vida."
Assim, com trechos colhidos ao acaso, ainda tomado pela emoção advinda da perda de um amigo, ressaltei retalhos da personalidade de Mozart Victor Russomano. Das outras facetas mais relevantes da sua história, naturalmente, cuidarão escritores e admiradores de maior envergadura, pois preferi reproduzir momentos de experiências pessoais.
Poderia fazer minhas as palavras que ele utilizou para demonstrar o seu apreço por Aderbal, todavia decidi deixar o meu coração ditar as palavras desta singela homenagem.
Afinal, quando um amigo dileto se vai, morremos um pouco com ele, embora, forçoso é reconhecer, ele permanece vivo na nossa memória, nos fragmentos inolvidáveis das nossas mais preciosas recordações.