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cronicas-->Observador -- 06/12/2010 - 18:57 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dizem que o peixe morre pela boca; lá isso é verdade. Eu posso dizer que meu drama começou lá pelas tantas, quando voltava para casa, dentro do coletivo, depois de passar pelo cobrador. O ónibus rescendia a colónia barata, suor dos mais diversos tipos, cigarro que alguém carregava nos poros e cansaço. Muitas pernas se cruzavam, uma menina lia atentamente um folheto; outra encarava abertamente um homem mais velho que ela, provocativa. Uma terceira, pensativa, olhos perdidos na noite lá de fora, divagava sem prestar atenção ao seu redor. A modorra do andar do ónibus embalava o sono de muitos e um gordinho ressonava no banco sobre a roda, sem nenhum apoio para sua cabeça que pendia qual fosse um objeto solto de seu corpo gelatinoso.

Meu trabalho é esse: Sou um Observador. Observo as pessoas, anoto suas características. Sem emoção alguma, sem prejulgar ninguém. Eles acham interessante, anotar todas as características. Adoram minhas descrições minuciosas e atentas. Guardam tudo o que anoto porque estão montando um banco de dados gigantesco. Dizem que assim preservarão as qualidades e defeitos dos observados, como se fossem gravá-los todos. Sou uma espécie de detetive de posturas, um investigador de maneirismos. Sou um olho deles. Pagam-me bem! Só posso dizer que me sustenta por um mês, sem luxos, mas posso viajar ao final de minhas observações para mentalizar fora do ambiente, para que possa, numa outra rodada de viagens urbanas, fixar novos personagens, novos corpos errantes...

Aquele gordinho se mexeu, quase caiu, não sem antes ser alertado pela senhora de olhos bondosos que o chamou suavemente antes que ele desabasse do alto do banco e fosse parar humilhado no chão do veículo. Duas moças sentadas atrás falavam rapidamente, olhando-se nos olhos. Uma delas tinha um segredo a contar e eu podia ler seus lábios. Ela contava à outra que ele era avantajado e a outra ria à beça, mas como você aguentou, ela entre sorrisos e suspiros, o que não se faz por amor... Risadas baixinhas completavam o quadro que eu podia imaginar, ela e o avantajado numa louca tarde de tórrida paixão, longe dos olhos dos pais que pensavam ser ela uma estudiosa do comportamento humano (estudava psicologia, fiquei sabendo depois), mas ela o que fazia mesmo era encontrar seu namorado nos lugares mais loucos da cidade. A outra podia ver seus mamilos túrgidos de inveja e desejo, ao ouvir os detalhes picantes da posse de sua colega pelo seu namorado. O gordinho se levantou do banco, passou por mim, tirou o dinheiro da passagem de seu bolso traseiro de uma calça jeans puída, velha, desbotada. A senhora de olhos bondosos o olhou complacente. Era como se dissesse "já fui assim" e se conformasse com sua própria existência.

A moça de olhos sonhadores mexia os lábios num murmúrio incompreensível, mesmo para meus olhos treinados de tanto escutar as falas ocultas. A outra sorria escancaradamente, deixando o homem mais velho cada vez mais encorajado. Pude notar o fluxo de hormónios subindo pela sua nuca, as orelhas vermelhas de tanto pensar, as mãos inquietas sem saber o que fazer. Ele esperava a deixa para poder sentar ao lado dela. Ela tinha um brilho no olhar que era uma chama convidativa, persistente. Nada poderia resistir àquele chamado. Nada poderia ser feito; ele estava fisgado. Assim que saiu um senhor opaco que estava ao lado dela, ele se levantou e pediu licença para sentar ao seu lado. Ela aquiesceu com o olhar e começou a conversar baixinho, visivelmente excitada com sua nova conquista. Um calor brotava entre suas coxas, podia farejar com meus aguçados sentidos. Sua postura indicava algo extremamente sensual, coisa a que nenhum homem pode resistir.

A moça do folheto devia ter seus vinte e poucos anos, sorvia seu conteúdo com uma concentração tal que me surpreendeu. Ainda eram capazes disto! Porque também via a quantidade de pessoas com microfones de ouvido, telefones celulares ligados, joguinhos de passar o tempo... Tudo para a distração de suas mentes, a atrofia de suas mentes, a obliteração de seus conteúdos. Eles adoravam ouvir isso, porque afirmavam, vai ser tão fácil assim? Eu afirmava, vai. Muito fácil! A moça pensativa parecia recitar um mantra, repetia um som que vibrava em sua boca, produzindo uma cor parecida com o violeta, que se desprendia de sua caixa craniana e exalava como que um perfume para os que estavam em torno. Parecia ser agradável estar ao lado dela. Ela tinha a pele suave, lisa, seus grandes olhos meio claro-escuros fitavam a paisagem e sua vibração deixava o ónibus tranquilo. Era como se orasse; uma das qualidades que eles sabiam ser muito útil. Essa era uma coisa que eles admiravam: a capacidade de o sofrimento ser sublimado, o temor amenizado pelo poder das orações daquela gente.

Como que atraído, levantei e sentei ao lado da moça de olhos flutuantes. Ela assim que me viu virou-se para mim e sorriu, suavemente. O que mostrou para mim foi uma fieira de dentes perfeitos, brancos e um sorriso de fazer covinhas nas faces. Não havia ninguém lá dentro que rivalizasse com sua simpatia. Ela notou meu evidente interesse. Sua mão direita tinha um anel cheio de ranhuras, dourado. Ela fazia movimentos com uma trança de seus cabelos que notei, tinham reflexos de cor amarelada, mas alguns fios misturados tinham cor vermelha de tal modo que eu não sabia se ela era ruiva ou loira mechada. Cílios longos completavam o quadro de beleza suave, algumas sardas respingavam seu colo e eu notei que suas pernas eram bem formadas, evidentemente tratadas a pão de ló com dieta e exercícios físicos. Carregava um livro nas mãos que estava sobre suas coxas; era algo sobre o poder da oração, como eu desconfiara. Eles gostariam de ver o que eu via e foi aí que eu comecei a sentir o que não devia, até porque era pago para não sentir o que não devia,. Esse era meu trabalho, um detetive de faces, um perscrutador da emoção alheia. Ela continuou seu murmúrio incompreensível, produzindo um suave calor que emanava de sua garganta e relaxava os circundantes. Incrível como fazia isso, eu a observava sem a constranger... Mas meus sentidos aguçados anotavam tudo, para depois descarregar minha montanha de sensações para eles que esperavam avidamente meu diário de todo o dia.

A senhora de olhos bondosos fixou em mim seu olhar, entendendo que seria impossível que eu não estivesse ali, sentado ao lado daquela criatura maravilhosa. Ela se aproximou e sentou-se atrás de nós; curiosamente notei que ela orava também e que dela se desprendia o mesmo calor que o da moça. Era como se ela se juntasse à vibração dela e em conjunto pacificassem o ambiente em torno. A moça conquistadora saiu acompanhada do moço mais velho, não sem antes eu notar o imperceptível movimento de seus quadris e a mão dele apalpando seu traseiro, o que lhe deu imenso prazer a julgar pelo sorriso e olhares maliciosos que ela lhe deu ao descer as escadas do coletivo. O calor que ela exalava era insuportável, eu podia sentir em meus ossos. Sua cor era um vermelho vivo e a dele, um amarelo faiscante. Eles gostariam de saber, tinham fixação em cores, cheiros, odores, gemidos e palavras. Como eram detalhistas! Pareciam copistas antigos que minuciosos redesenhavam figuras de outros escritores antigos para parecerem mais originais que os próprios autores. No fundo, queriam melhorar a perfeição. Queriam recriar o belo, queriam refazer certos caminhos insondáveis. O cobrador já conferia o troco, o ónibus já se aproximava de seu ponto final, era agradável ficar ali, sentado ao lado da moça que orava, com a senhora de olhos bondosos atrás, vibrando emanações violetas...

--Ponto final!

O cobrador levantou-se.

A moça levantou-se com seu livro; a velha avó também; eram as únicas que tinham sobrado, ao final de uma longa e exaustiva viagem. A senhora de bondosos olhos perguntou a ela se ela gostava de orar; ela respondeu que sim. Saíram do ónibus conversando animadamente, enquanto eu, sem me notarem ( nunca me notam) continuei sentado lá, até que eles me chamassem de novo. Agora tinha de ir ao fundo, para que pudesse ver novos personagens dessa infindável narrativa que se desenrola... Eles me pagam para isso, ora.
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