Terremoto, tsunami, nevasca e vazamento radioativo. Tudo ao mesmo tempo! Milhares de mortos. Feridos, mais ainda.
Mas no Japão? Como é possível, em um país tão preparado e experiente em matéria de terremotos e tragédia nuclear?
O fato é que nada disso poderia ser evitado, exceto um dos episódios. É claro que, neste momento de aflição, a última coisa que interessa é encontrar culpados. Mas convenhamos, nessa tragédia a única ocorrência que o homem poderia ter evitado é o vazamento.
Pra dizer a verdade, se houve culpa, os culpados somos todos nós.
"Como, assim?" perguntará a indignação do leitor.
Se você tem dúvidas, então observe. Por que os morros soterram comunidades inteiras nos deslizamentos no Brasil? Um debate de especialistas apontaria uma combinação de fatores, mas numa reflexão sem rodeios a questão é clara. O ser humano acredita em duas coisas: naquilo que deseja e naquilo que teme. Michel Montaigne e outros pensadores vão mais longe. Dizem que o homem também tende a acreditar naquilo que menos compreende.
O morador do morro e o prefeito do lugar acreditam no que desejam. Sossegado, o morador insiste em acreditar que tem um lugar para viver. Folgado, o prefeito está convencido de que sua gestão tem corpo fechado. Espera sair inteiro do mandato, como seus suspeitos antecessores. Portanto, se o morro cair, será no mandato de algum outro.
E quanto a outras tragédias históricas? As vítimas do Titanic acreditavam em quê? Da mesma forma que os passageiros do dirigível em chamas e os tripulantes do Challenger e do Columbia, talvez acreditassem em projetos que não compreendiam e, alguns, no glamour que lhes fascinava.
A pessoa dominada pela paranoia também acredita no que teme ou deseja, a ponto de ter a sanidade devorada pela sua crença. Mas devotos do passado e do presente nem precisaram se entregar a tal patologia para temer o inferno e muito crer em sacerdotes, a ponto de confiar na justiça das fogueiras e negar a pedofilia sob os mantos mais santos.
Os coautores de quase todas as tragédias somos todos nós, seres insuperáveis no ofício de dar mau exemplo aos semelhantes e às demais espécies.
É óbvio que um país adiantado não constroi usinas sob efeito de ilusões e emoções. Mas os limites e as circunstâncias de ambiciosos projetos costumam se subordinar a apelos subjetivos.
Um programa de energia nuclear pode conter maravilhas que engrandecem um governo e prometem bem-estar social. Então, como não fiar, se desenvolvimento e emprego são conquistas tão necessárias em nosso tempo?
O acidente no Japão assustou grandes potências. Provocará mudanças em diretrizes e revisão de configurações técnicas, mas não mudará a ilusão do homem e a loucura dos povos.
A ideia materialista de felicidade se nutre do paradoxo de confiar no que não é confiável. No Oriente e no Ocidente, seguiremos acreditando naquilo que a ilusão propõe, o coração pede e o ego ordena.
É como poltrona de avião. Naquele divã das alturas, preferimos ficar com o doce sorriso da aeromoça a reparar na ressaca do piloto. Acreditamos cegamente nos avanços da economia e da tecnologia porque desejamos as maravilhas que estão por trás delas. Então, acredita-se nas talidomidas dos laboratórios, nas vantagens financeiras que camuflam bolhas imobiliárias e na suposta eficiência dos modernos aparatos antiterrorismo.
Da mesma forma, não dá para duvidar da viabilidade dos sistemas de previdência social sem destruir a expectativa de uma aposentadoria feliz. Não dá para investigar a solidez dos mercados financeiros sem desistir dos investimentos milionários. Nem questionar as experiências da engenharia genética sem abandonar o sonho de uma vida sem doenças.
Dizem que, no final da vida, Friedrich Nietzsche também foi tomado pela insanidade. Pode ser. Mas antes disso, soube martelar sem meias palavras: "nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra."
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