Sei que não deveria começar assim, isto é, um conto. Sei que a Vida não propriamente é um mar de rosas, nem de estrelas. Não saberia dizer aonde chegaria o nosso limite, se é que existe o tal limite. Pois bem, o limite entre o tudo e o Nada absoluto. Nada disso que eu falo pode atrair alguém, eu sei. Ninguém quer saber sobre o negror da Noite Cósmica, o escuro caos que nos envolve. Todos querem saber do último sabor, do único raio de sol que nos acompanha; quem quer saber sobre as nuvens que nos dão o tom da tempestade que nos acerca? Quem, nesse bendito planeta, se importa com isso afinal? Estão todos envolvidos com a obscura luz de suas existências e o que elas trazem de imediato, de mundano. Se você começa uma conversa assim, num bar, depois do terceiro gole, vão dizer que você ou está bêbado, ou que finalmente enlouqueceu, ou que apenas é blasée, puramente fazendo pose de intelectual. Alguns narizes se torcerão e cuidado, na próxima festa regada a vinho, nada de convites. Quem ouviria Debussy numa noite fria, cercado de ventos atrozes, a lua com um clarão lá fora e um acorde de piano ao longe lembrando uma fábula, numa janela escondida, onde mãos mágicas iniciam os acordes que darão o tom de um mundo de sonhos?
Pois é, não deveria, mas comecei assim, pois as mãos mágicas estão lá, justapostas em uma pequena peça, "Claire de Lune", Debussy. Ela olha as notas, na partitura, encantadoramente apaixonada e não sabe ainda se a paixão que sente é verdadeira ou a música em sua origem a leva ao êxtase porque ela toca com as mãos soltas e quem a ouve sabe que delas só poderiam partir os acordes daquela pequena peça nesta exata hora, neste incrível momento. Porque ela sabe, questão de tempo: Ele se fará ouvir, num estalido de galhos secos, no murmúrio da brisa que move os ramos do bosque de pinheiros que ela tem ao lado de sua casa. O engraçado é que ele jamais saberia de sua existência, não fosse estar de passagem por ali, bem no instante mágico em que ela começara a tocar as notas em seu piano! Tão impressionado ficou com elas porque ele olhou a Lua, gigantesca no céu e projetando sua luz prateada nos ramos das árvores e imaginou quem seria o anjo a derramar aquela bênção sobre o mundo. O vento torcia as nuvens que rápidas tomavam as formas de talvez um rosto, talvez os olhos apaixonados dela que se diluíam na noite, à espera que ele pare, contemple o que a vida tem de tão belo e musical... Quem sabe?
--Quem pode ser?
Ela sabe o que faz. Toda mulher sabe o que faz quando toca uma peça de Debussy, no meio da noite, ao clarão da Lua. Toda mulher sabe tocar seu piano interior, todas sabem aonde atingir em cheio as almas errantes, esperançosas de que sejam essas que as libertem de sua solidão sagrada... Pois não é toda bela mulher uma alma solitária? Por mais cortejada que seja, pela sua beleza, jamais estará satisfeita em sua essência, porque aqueles que a chamam de bela podem deixar de fazê-lo assim que conhecerem a mais bela de todas. Por outro lado, aquelas nem tão aquinhoadas pelos belos dotes naturais jamais se sentirão satisfeitas porque justamente não conhecerão o verdadeiro amor, aquele que brota de dentro e de fora, aquele que começa pela primeira impressão e termina nas noites de luxúria que afinal todas as belas têm. Isso não importa agora, o caminho cravejado de luz prateada parece um teclado de piano com seus claro-escuros; na noite, as notas lampejam e um ou outro feixe de prata guia os passos dele que se dirigem para a janela de onde parte o motivo de sua espera de toda a vida: Achar as mãos que movem as cordas de sua alma agora...
--Quem pode ser? Quem, na mais calada hora da noite, pode Oh Deus, nos fazer crer que o Paraíso pode descer à Terra e tocando-nos com um quinhão do Infinito, iluminar nosso tão árido caminhar?
As cordas se movem entre notas soltas; aparentemente o elo entre elas passa pela textura da alma de quem compôs a canção... No entanto, cada interpretação é única. Cada nota pode soar falsa se tocada sem a paixão e o arrebatamento que cada estado emocional carrega. Como fossem bilhões de estrelas, brotam dos dedos dela mil formas. A lua se move, as nuvens se deformam ao olhar dele que apaixonado, fita a janela, esperançoso da aparição daquela que tem a pele alva como a rainha da noite e que tece com os dedos o seu caminho agora retesado num arco de sua alma... Um arrulho de pomba escondida, um ramo que balança ao vento... A seguir, num mesmo compasso, soam tristes notas de um estudo, outro que ele reconhece, como se a mágica fosse infindável.
--Quem pode ser essa moça, que tem as mãos tão longas, que faz de minha noite um pranto coberto de estrelas e nuvens? Quem será essa princesa que conduz as fadas ao amanhecer, que faz parecerem diamantes os espinhos da roseira que vejo?
Ela fecha os olhos e o perfume das rosas que deixou pela manhã por sobre a mesa de jantar enche seus olhos de tristeza e melancolia. Sempre foi e sempre será assim. E novamente ele respira e de novo ele ouve as notas se espalhando qual brilhantes, como jóias na escuridão, preenchendo os poros de sua alma de etéreo movimento, num crescer de melodias, num mar de sonhos de águas vivas fosforescentes, numa lúcida agonia, numa última vertigem... Ele fecha os olhos e quase pode vê-la sorrindo, uma lágrima escorrendo pelo alvo rosto, a própria expressão do belo, a quintessência de tudo o que ele quer. Ela quer, precisa dele. Nesse momento, agora, já. Daí as notas serem tão eloquentes... Daí ele sentir a premência de pelo menos ver, com seus próprios olhos, se existe tal anjo ou se a música existe por si mesma, engendrando ela um ser que a toca e a ele que a escuta, numa singela inversão de valores, como se antes do clarão existisse a intenção dele e talvez a noção da Lua em seu infindo movimento.
--Quem poderá ser esse moço, que me ouve na noite a louvar a lua e que pressente, antes que me veja toda a solidão que eu sinto? Como poderá ele, Meu Deus, saber da infinitude de minha alma, de tudo o que carrego de promessas dentro de mim, como se a Criação começasse e terminasse em mim mesma? Quem será esse que desvendará os véus que recobrem minha alma, quem será esse que habita as esferas de meus sonhos?
Eu disse que a vida não é, nem nunca foi um mar de rosas. No entanto, quem pode ser o pianista que toca todas as peças de todas as noites de milhões de seres na Noite Cósmica? O que nos salva do Caos escuro, da Solidão de mil faces? Somos nós, nesse fugaz instante da Natureza, ou é ela mesma que nos deu a corda, a habilidade de tocar e nos fez descobrir o mistério que move nosso encontro interno, a melodia oculta em cada luar de nossas vidas tão breves? Porque o parque está lá, quando eu passo as mesmas notas eu as posso ouvir, as mãos eu posso evocar, o lindo anel de pedra clara ainda se movimenta no compasso das notas qual cisnes num lago, cabeças eretas e desafiadoras ao mundo da inexistência: Está lá a mesma casa, a mesma janela e o alvo pescoço dela, com os cabelos soltos e revoltos, à espera de minhas mãos que percorrerão suas lisas superfícies. Posso evocar e novamente volta à vida o luar daquela noite, quando passei sob a janela dela e ao fechar-se o piano, ainda pude ver sua mão fechando as persianas.
Quase pude ouvir seu soluço.
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