O vento não arredava pé, sacudindo as janelas em lufadas. O mundo encolhia em fragmentos de sonhos. Todos dormiam em seus tranquilos quartos: já haviam penetrado no mundo intermediário, aquele onde reinam as mais fantásticas visões, os mais estranhos seres e paisagens. Muitos sabem o que os aguarda, outros não imaginam sequer um pedaço. Ela se recusava. Não, antes de dormir teria sim de se haver com ele, aquele que se fora, aquele que ela havia amado até secar a última gota, ele que deixara apenas uma leve impressão; deixara-a de chofre, sumindo na escuridão do Eterno, a muitas léguas dela, milênios dela. Não, ela sabia, ele morrera mesmo.
Pequenas gotas de uma teimosa garoa enevoavam o mundo rarefeito do Inverno, o irreal mundo das folhas cadentes e dos céus cristalinos e enxutos. Dos ramos ressequidos das grossas árvores que se agitavam lá fora, resistindo aonde não iríamos jamais nem de noite nem de dia. Ela olhava a pequena chama da vela votiva que iluminava o caderno aberto na página que ela escrevia, ano após ano, dia a dia, como se fora uma Ariadne guiando-o talvez de volta pelos labirintos da escuridão do não-existir. Muitos já tinham pedido, implorado até. Pare com isto, ela pensava, pare com isto! As recordações eram tantas, tamanhas eram as lembranças que ela não conseguia, simplesmente não poderia. Não agora, ainda não o deixaria só, boiando num lume sem farol, sem casca, sem substància. Não.
--Deixe disto.
--Venha conosco, filha. Já sofreu demais! Ninguém merece e, afinal, ele não morreu por sua culpa!
Corriam as lágrimas no rosto de sua mãe e ela sabia que no fundo ela tinha razão. Sim, porque chegaria o dia em que, findo o rito de sua existência, ela se daria conta de que tudo passara e o choque da não existência dele a deixaria definitivamente abalada. O caderno era um elo, talvez o último, talvez o único. Na pequena mesa à entrada da sala de visita, estava o móvel, encimado por um prato japonês grande e colorido aonde pétalas de rosa perfumavam o ambiente, numa lembrança das nuances dele (ele adorava lhe dar rosas de todos os tipos, ele lhe mandava os buquês mais inesperados, lhe mandava grandes rosas polpudas que lhe enchiam a alma de desejos, pequenas rosas espinhentas quando eles brigavam, uma única quando viajava e o deixava só.
--Você é tão bonita! Logo, há de aparecer alguém.
--Não quero! Quem disse que eu quero?
As amigas a convidavam a sair. Ela ia, seu espírito ficava em casa, junto ao Caderno, junto à Vela, junto ás Pétalas. Ela seria uma marionete então e nas raras vezes que saía, geralmente nas doses a mais chorava porque se lembrava dos lábios dele sorvendo a bebida dourada (ainda havia a garrafa, como ela poderia deixar de?...) e enlaçando sua cintura. Nos momentos da mais apaixonada ternura, ela se via envolta numa névoa densa, amarelada, e ele a montava, amando-a sofregamente, sem trégua. Isso a desanuviava, a deixava impune para o mundo; Isso a vacinava contra os olhos dos outros que a queriam e ele sabia de seu encantamento sobre ela.
Naquele dia, ela estava estranhamente contente. Não porque houvesse esquecido, mas porque finalmente, num momento de ternura, espalhara o que restara dele num bosque próximo. O vento batia tênue então, as árvores farfalhavam, um dia qualquer de Outubro. Era noite, ela chegara, abrira o caderno, espalhara as Pétalas, acendera a Vela e escrevera as palavras que trocava com ele, num diálogo que ambos - e só eles dois - entendiam.
"Querido, amado amigo, meu maior amor do mundo, meu eterno marido. Hoje, espalhei você nos ares do bosque que amava. Fiz isto porque o amava demais. Fiz isto porque eu sabia, já era a hora de partir a um novo desafio. Já teci o seu sonho, da tessitura dele nasceu o seu caminho que é o de nosso amor. Nosso amor que nunca morre, não perecerá com a matéria, esta limitação que nos impusemos. Não haverá nunca quem nos separe, não haverá nunca algo que possa diminuir o que ainda sinto por você. Por todas as noites que passamos juntos, pelas noites maravilhosas que tivemos nos mares verdes e claros de nossa paixão, em nome de tudo que é sagrado, liberto você de meu fio prateado. Siga seu rumo, meu querido. Eu seguirei o meu. Porém, saiba: Ninguém jamais chegará nem perto do que você foi para mim".
Olhou o Caderno pela última vez. Fechou-o e o guardou na gaveta. Apagou a Vela votiva e as pétalas de rosa ressequidas, juntou e jogou no jardim. A caminho de sua cama, pensou ter ouvido um choro de criança, talvez vindo do bosque, talvez o fiapo de um sonho de alguém que andava perdido numa floresta, e que agora se achava em plena caminhada, sorrindo de alegria, sem olhar para trás.