Na verdade, ele não sabia o que via naquela garota. Talvez o seu charme desmesurado, seu perfume inebriante. Um olhar apaixonado, um olho furta-cor; as mãos inquietas, o abraço trêmulo, a sensação do inescapável, nada disso o deixava mais cónscio de si do que ao estar com ela, seja numa escada, seja no meio da avenida inundada de carros, seja na quietude transparente de um quarto-sala. Ele não sabia, ela mudava seus desvarios, golpeava as limalhas de ferro de sua bússola e migrava seu Norte mais ao Sul. Ela invertia suas expectativas, sempre. Nunca ficava surpreso com as vezes em que ela o surpreendia, de maneira alguma.
Quem sabe o que nos reserva o dia a dia? Num encontro estranho pode estar a sorte de sua vida ou a perdição de todos os seus sonhos. Não é assim desde o Paraíso e a maçã? Teria Adão comido do fruto proibido não fosse a serpente e Eva, a bela Eva? Pois não é que a sílfide sempre volta à tona? Fora assim que ele a conhecera, agora que analisava os fatos. Num dia de calor, ele conhecera o perfume que conquistaria parte de sua vida e grande parte de seus sonhos.
Com grandes olhos claro-escuros ela o olhara, ela o cobiçara em segredo. Um encontrão-premeditado, é claro-o deixara teso, como jamais o sentira, mais ainda porque ela, com sua força pura de mulher, o sentira pronto, ávido, seco de amor e desejo. Numa noite chuvosa, selaram um encontro, sob trovões e relàmpagos e um vento que se reproduziria em todos os momentos de sua vida em comum.
As mãos dela eram longas, cheias de veias, lisas e quentes. Ela tinha um carinho enorme nelas, dir-se-ia que sua alma lhe ia nos dedos, tanto era o desejo que ela lhe despertava quando lhe tocava com cuidado, com carinho e sempre olhando seus olhos habituados a ver quase tudo e absolutamente frágeis no conhecimento que era o que ela tinha de mais profundo. Era um desejo enorme, era uma provação sentir seus toques de magia sem poder abraçá-la fortemente, sem pausa, sem fólego, coisa que eles faziam cada vez mais frequentemente, nos meandros que podiam habitar; Não viam a hora de se encontrarem e cada vez mais queriam ficar sem hora para partirem.
Pois foi num dia de chuva que a perdeu; na verdade ele se perdeu de si mesmo, num enorme engarrafamento e ela que o amava tanto não soube esperar a sua chegada. Quando ele finalmente chegou ao ponto combinado, ela havia passado como um cometa e um bilhete sinalizava sua impaciência de mulher. Não esperara e ponto. Um anticlímax, um desvario e tudo por conta do trànsito, do enorme engarrafamento que habitava os corações de todos os citadinos hoje em dia. Os olhos cobertos de fuligem e pó, a irritação na traquéia e as lágrimas involuntárias lhe mostravam que havia bem mais ali que um bilhete, talvez fosse a diferença de idade, talvez o seu estado perigoso-não é toda moça que aceita ser a segunda, a terceira opção na vida de um homem.
Um dia, bem no futuro, passado o tormento do desejo e as tristezas da separação, um dia lá ao longe, quando suas vidas já haviam amainado e os rios já se encaminhavam à foz, ele teve um vislumbre do que poderia ter sido e não foi. Ele a viu passando numa rua, sozinha, ainda resguardada dos sabores do tempo inescapável. Ela o viu, fitando-a do outro lado. Os carros passavam velozes, sem piedade. ela caminhava só do outro lado, num marchar paralelo, no mesmo compasso que ele. Ele já havia comprado o jornal que devorava todos os dias, em busca de notícias dela. Ela sabia de sua avidez.
Quem viu o casal se encontrando no meio do turbulento burburinho de carros e buzinas e cães ladrando jamais poderia supor que a História escreve certo pelas linhas tortas do destino.