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cronicas-->Idolatria -- 28/05/2012 - 09:08 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Todos pensam que existe um Deus. Todos querem ver os entes queridos ao deixarem esta vida. É notável como o ser humano tem esta ilusão e, em nome dela, comete as maiores barbáries. Uma pena, porque eu acabo de saber que nada acontece, lutemos o que queiramos lutar, façamos o bem ou façamos o mal. Nada acontece, absolutamente, apenas perde-se a consciência e mais nada. Um sono sem sonhos, duradouro, do qual você não acorda. Jamais. Todos os camaradas que eu encontrei aqui me disseram isto e olhe que eu era dos mais crédulos! Eu acreditava que um dia ia ganhar na Mega-Sena, mesmo vendo tanta gente se locupletar em nome de Deus e da família...Os camaradas meus daqui onde estou dizem que não, não há Deus nenhum. Eles argumentam: Se houvesse, você acha que estaríamos aqui? Aqui, onde?
--Mas, esperem. Se é um sono sem sonhos, como estamos aqui?
--Você acordou , ué.
--Mas e o sono sem fim e sem sonhos?
--Paradoxos, meu caro, fazem parte da imanência.
--Se existe imanência, há o indizível?
--Pergunta capciosa, hein. Estamos no mesmo barco.

Acabo de saber que, sendo rico ou pobre, tendo passado a vida de sol a sol ou tendo nascido com os glúteos avantajados voltados para a Deusa Selene, é a mesma coisa. Eles me disseram que de nada adianta ter a moralidade ilibada, ser um pai exemplar de família, jamais ter cometido adultério e sequer ter cobiçado a mulher do próximo. Um dos nossos companheiros desgarrados da cintilância teve três famílias e ostenta um ar de inefável felicidade no rosto. Também, ele só sorri, não fala nada, coitado. Acho que se desgastou demais em sua vida.

--Quer parar de sorrir?
--Hã?
--Ele só fala "Hã".
--Hã?
--Esquece. Me passe o remo.

Sabem, remar nesse rio é difícil, porque somos quinze e o barco é úmido, cheira mal e as águas são espessas como uma calda grossa.

--Hã?
--Reme!

E lá vamos nós neste rio, tem um indivíduo lá na frente que dá as ordens. Foi ele quem mandou os mais fortes remarem neste rio, nós, o adúltero, os meninos do subúrbio que continuam ouvindo rap e balançando as cabecinhas, o nariz ainda pintado de talco, inocentes do tal sono que nunca acaba; o Dunga (hã?) e os outros, inclusive eu. Nada, nada de punição nem de fogo eterno. Podemos ter aqui desde o ex-presidente corrupto até o mais humilde hindú que passou a vida se martirizando para o tal Nirvana, para descobrir que neste rio, quem rema é quem manda mais. Todos remam, a mão do nosso líder aponta para a margem. Lá, podem-se ouvir sons indistintos. um ou outro de nós se agita, talvez pressentindo alguma coisa estranha. Ouve-se um grito, talvez um gemido.

--Hã?
--Ouviram?
--Não fui eu.
--Nojento! Nunca perde a chance.

Sinto dizer, mas aqui não tem cigarro. Não tem mulher, não tem intenet, não tem bacon e fritas. Não tem nada. Só o barco, a luz baça. Os gritos ao fundo, nosso líder alto comandando as remadas e o rio espesso, como uma calda de doce de cidra. Torna-se cada vez mais próxima a margem. Nosso líder se volta para nós e aponta o cais, um conjunto de tábuas retorcidas, ferros que de tão antigos se esfarelam; âncoras, vestígios de barco, espinhas de peixe ressequidas e um ou outro sonâmbulo que pisa as areias cinzentas de umidade.

--Você, primeiro!
--Hã?
--Próximoooo!!!

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