"Essa eu faço questão de contar,o Tio Vania era um russo que fugira da máfia há uns anos atrás. Entrara no país desacorçoado, traído pelos companheiros socialistas do bloco de meia tigela, como ele os chamava. Antes poderosos, agora o que diziam soava mais como bravata de bar, papo de adolescentes revoltados com papai e mamã, vou avisar, vou passar a noite fora,vai logo, filhinho. Tio Vania, cinquentão enxuto. Ombros largos e olhos azuis encimados por sobrancelhas brancas, nariz de ex-lutador de boxe--fora campeão da Liga Russa nos anos oitenta, o que não é pouco, diga-se de passagem. Como Vania entrou no país? Valeu-se de um salvo-conduto que conseguiu com o cônsul bielo-russo, que por sua vez mobilizou certo embaixador que fora adido cultural do lado de lá do Muro na Alemanha Oriental. Ele tinha um quê de misterioso. Quando se tratava de perguntar a ele que raio era ser um representante comercial, ele dava voltas no cérebro. Na verdade, fugira das novas elites, que andam engalanadas, de carros de luxo e armadas até os dentes. Segundo Tio vania, nunca houve tantas putas no Leste como agora.
No que me cabe disto, falava com ele que de putaria eu entendia, de modo que se ele quisesse fazer uma sociedade...Ele abria uns olhos deste tamanho, faíscas azuis saiam de seus globos e pupilas e ele falava...
--Você não tem idéia do que está falando. Trata-se de milhões de mulheres, crianças quase, muitas vindo de longe para acabar em pocilgas escuras no Leste europeu. Falo de Praga, falo de Moscou, falo das repúblicas sérvias. Niet, Niet! Jamais faria isto. Posso ser o que for; posso ter perdido a mão como revolucionário,mas não me peçam para colocar minhas patas sobre essa podridão. Verdadeiro tráfico humano! Niet niet!
Suas mãos tremiam, seus lábios vibravam e sua pele enpalidecia; foi quando fiquei sabendo que uma irmã dele havia se recusado a participar de um negócio assim e morrera tragicamente na Ucrânia. Era difícil amansar sua raiva, ele brigava muito. Tinha vezes em que comprava todo um estoque de vodka Absolut; dava conta ele mesmo, depois dizem que o brasileiro bebe! Pois sim, Tio Vania enxugava garrafas e mais garrafas e depois da esbórnia, nada, era como se nada acontecesse. Olhos azuis, limpos e brilhantes comoo Volga. Nunca perguntei para ele, mas um dia ele cantou uma canção russa enquanto estávamos em pleno trabalho, você sabe. Encantadora a canção, ele dizia que era o que as mulheres da Rússia bolchevique cantavam enquanto os companheiros iam à luta contra o Fuehrer. Morreram milhões em Stalingrado, mas o bigodinho congelou e começou ali sua derrocada. Com orgulho, Vania dizia que uma parte de sua família defendera com seu próprio sangue o território, casa por casa.
Vez em quando pergunto de Putin. Vania dá um sorriso macabro.
--Olhe nos olhos de um chacal. Talvez você tenha a noção do que Putin é. Sua camarilha se instalou nas Dachas dos corruptos de antes, para continuar com os corruptos de agora. Owell tinha razão, Putin tem um quê de porco, assim como Zha Bao. Ninguém se salva; só quem tem o poder de fogo sabe do que falo.
Tio Vania me ensina de vez em quando noçoes de russo. Língua difícil, olha que eu sei falar espanhol e arranho inglês, meu negócio tem de ser internacional, oras! Mas ele é triste, quer voltar para suas florestas enormes, quer viver de novo à beira dos montes nevados, quer andar sobre o Volga congelado e ouvir o ruído dos gelos se partindo no início do degelo da primavera russa. Ele fica de olhos marejados, porque sabe que se pisar lá, será um homem morto. Aqui, não tem identidade. Aqui, manobra uma van. Aqui, corre para lá e para cá com seu transporte escolar e, vez em quando, toma um porre homérico. Seu rio caudaloso deságua na minha casa, os gelos de sua triste sina se quebram em minha cama; os ruídos da sua primavera efêmera se esvaem nas noites de luxúria atroz. No dia seguinte ele some, sem sotaque que o desmascare. Torna-se uma voz entre tantas, sem segredo e sem perfume."
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