Quando você recebe um paciente na triagem, em geral, vem uma espécie de diagnóstico escrito na ficha de atendimento.. No cabeçalho, próximo do local onde você lê os dados, existem pequenas letras que dizem o tipo de passagens anteriores do paciente. A ficha denuncia: Quem está na sua frente 'passa demais no médico'. Já passou com ortopedista, já passou com cirurgia, já passou 'n' vezes...Com clínicos...
Quem está em minha frente agora? Uma senhora vestida com uma saia branca, com uma camisa azul-clara, com miçangas ao pescoço, traz uma espécie de saco amarrado, que faz as vezes de bolsa. Carrega suas coisas lá. Tem 66 anos, segundo ela declara. Aparenta mais, como sempre aparentam os sofridos, os enjeitados desse povo...
Dona Marieta, é seu nome.
--Este é meu nome. Tenho orgulho de ter tido a mãe que eu tive. Sabe?
--E o que a trouxe aqui, dona Marieta?
Ela me olha muito. Seus olhos têm tonalidade clara, apesar da pele amorenada. Deve ter tido ancestrais de olhos claros.
--Seu Doutor, eu venho aqui...Sempre a esta hora...
Eram mais de onze da noite.
--Sim?
--Porque sou sozinha, seu doutor.
Várias passagens. No ortopedista, no cirurgião. No clínico. E ninguém para conversar. Já imaginaram alguém completamente só? Era ela. Filhos? Sim, tinha. Mas todos já haviam saído de casa. Marido? Há muito tempo a abandonara. Como vivia? Tinha uma aposentadoria de servente de café, do Estado. Vivia com aquilo, entocada em uma casinha dois cômodos que havia comprado com sacrifício. Uma vez, ela contou, a água levara boa parte do que tinha; sobraram algumas coisas que até hoje estavam com ela. Um pequeno rádio de pilha. Uma televisão preto e branco. Um livro de orações que sua mãe lia para ela de noite, há muitos anos.
A solidão e seus males; há muitas pessoas assim na cidade. Há muitos idosos que preferem viver sós, porque são autossuficientes. Já há outros, como Marieta, que vivem sós porque a vida os tornou assim. Filhos não costumam abandonar seus pais, pelo menos é o que se espera. Mas no caso dela, havia sido severa com eles. Eles se afastaram porque ela tinha lá suas manias. Como, por exemplo, não deixar que ninguém entrasse em sua casa de sapatos , 'traz bichos de fora. Que nojeira!'. Ou de exigir que lhe lavassem a louça quando comiam 'porque todos precisam ajudar na casa'; porque todos deviam orar e ai de quem não orasse para agradecer o pouco que tinham. O que desobedecia levava surras, o que não agrada ninguém, cá entre nós, convenhamos. Mas apesar de suas manias, Marieta não era má pessoa, afinal. Levara todos os filhos até eles se tornarem alguém na vida. Um, se tornou eletricista de mão cheia. Outro era alcoólatra, enfim, ninguém é perfeito. Mas tinha lá sua casinha e fazia bicos de pedreiro. Outro, esse lhe dava orgulho, estudara e era contabilista. Fazia a contabilidade de várias empresas, era admirado por sua habilidade. Mas o que lhe dava mais orgulho era seu filho mais novo, aprovado em uma peneira de futebol há uns cinco anos, fora jogar em um time do interior paulista. Só que nunca mais voltara.
--Nem pra ligar, seu doutor;nem pra ligar.
A solidão machuca. Você chega em casa e ninguém para conversar. Marieta tinha um gato enorme que lhe fazia companhia. Até a imagino conversando com seu gato, nas horas em que tinha de lavar sua roupa, comer sua comida e ver sua novela de época.'Veja bichano, veja essa gente. Veja essa menina, como ela é bonita. Parece com a mulher de meu filho mais velho, com a diferença de que minha nora é mais antipática. Por quê as noras têm de ser antipáticas? De qualquer forma, bem parecida. Veja, veja que vestido! Ah, só em novelas mesmo'. O gato olhando Marieta e seu monólogo, enquanto ela prepara um magro jantar, que é o que pode ter (costuma fazer só uma refeição por dia, mas hoje se deu ao luxo de ter duas, só por causa de ter ganho mais uns trocados por haver feito dois bolos para uma festa de casamento, que foi adorável).
--Doutor, existe remédio para a solidão?
O que se pode falar para uma senhora de 66 anos, sozinha, que vive com um gato em sua casa? Que remédios dar para ela? Casos como este refletem nossa condição humana. Como médico, reflito em minha própria necessidade de ter de tomar decisões muitas vezes só, como certa vez em que fiz um parto em Embu-Guaçu,cidade perto de Itapecerica da Serra, de uma moça de dezesseis anos, primeiro filho. Eu olhei para cima e apelei mesmo: Meu amigo, sou eu e você. Eu agora sou seu instrumento! Nasceu um belo menino, de quase três quilos e meio! Agora, e seu tomasse a decisão errada? Bom, mas tenho meu anjo, como vou repetir em muitos relatos aqui, que me assopra ao ouvido: Mande esse menino para dentro. Preste atenção nessa dor...
--Dona Marieta, se eu disser que não, a senhora acredita?
--Seu Doutor, sabe que horas são?
--Pelo meu relógio...
--Meia noite e quinze.
--Puxa!
--Então...Existe um remédio sim e está aqui, bem na minha frente. É você. Abençoado seja, meu filho, conversamos quase uma hora, agora vou para minha casa tranquila. Quisera fossem todos assim, atenciosos. Mas a benção do Senhor há de chegar. Há de chegar porque pessoas como você, se posso lhe chamar assim, atraem as boas luzes. E pessoas como você mitigam a solidão de gente como eu, velha que não tem ninguém, fora um gato e uma televisão velha em casa para falar e ouvir...
Eu até a imaginei chegando em casa, toda pimpona, orgulhosa de ter conversado com um médico sobre sua solidão. Até a imagino abrindo a garrafa de café que ela já deixara pronta em sua casa limpa apesar de simples, e o gato ouvindo dela 'que médicos assim é de que a gente precisa, ele disse que toda quinta está no Pronto-socorro; vou visitar aquele moço, levar bolo de chocolate, ele está magrinho, deve trabalhar demais, o menino. Vou sim, ah se vou. Heróis são eles, não estes topetudos aí que fazem a bola rolar ou estes babacas que ficam de bunda de fora na casa do barulho. Ah, sim, esses são nossos heróis. Um dia vou levar você e pedir pra ele te ver, só para ele não achar que sou a louca do gato invisível, ah se vou. Mas que moça bonita hein, essa da novela hein??? Essa é mais ainda que a outra...'
Admiro muito o trabalho de Dráuzio Varella; tanto o que escreve quanto o que fez e faz. De modo que, certo dia, cheguei aonde ela me dera o endereço, levando uma televisão colorida e mais nova para que ela finalmente deixasse de imaginar as cores dos vestidos de época. Ela me brindou com um frango ao molho pardo com quiabo que nunca mais esquecerei. Sua casa cheirava a limpeza, tinha um quarto onde tudo estava arrumado, uma salinha onde numa estante ajeitara a televisão que eu lhe dera em dois minutos, um crucifixo acima de sua cama e alguns quadros pintados por uma sobrinha que ela conhecera faz tempo, marinhas primitivas. Durante um bom tempo ficamos conversando...quando lhe confessei de minha condição solitária também...
--Hoje vamos esquecer que somos sós. Não estamos sós, doutor. Nunca!
Efetivamente, ela tirou as palavras de minha boca.
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