A dor pulsava em seu peito. Pulsava de tal forma que nem pensar direito ela fazia, só fazia chorar. Sabia de que sofria, era um marido ausente, um filho errante no mundo; era a folha de sua vida que, passada a limpo, nada tinha de brilhante. Ficha que não caia, dizia ela. Bom, marido ausente, filho distante, fazer o quê aqui? Um bolo para comer sozinha ou com o gato que sinistro ronda o telhado vindo da casa vizinha?
Resolveu sair para a rua, a dois passos de sua porta. Abriu e viu a revoada das andorinhas, a árvore teimosa que insistia em sombrear a casa da outra, viu um ninho caído no chão ( os ovos intactos) e o vento levando folhas amarelas a uma viagem pelo ar do céu azul. Cuidou do pequeno ninho, dois ovos lustrosos, luminosos, branco-amarelados. Pegou uma caixinha de sapatos, colocou algodão em torno do ninho, acendeu uma pequena lâmpada para aquecer, quem sabe veria um nascimento milagroso?
Limpou a frente da casa, cumprimentou o carteiro que lhe trouxe umas correspondências que abriu sem desleixo, como antes: 'Carta de alguém para ninguém' como ela costumava se dizer tristonha. 'Carta resposta'. De quê? De quem?
'Vimos por meio desta lhe informar que, através da pesquisa cuidadosa de seu CPF, através de cruzamento de dados, a senhora ganhou um prêmio equivalente a...'e ela sentiu a dor pulsar mais ainda, porque nem contava com aquilo, ainda mais naquela hora, depois de tantos anos de espera, tanta solidão e tanta ausência.
De que adianta o dinheiro, um prêmio, se a solidão, esta escada para a escuridão, lhe acerca a alma?
--Bobagem. Esse dinheiro vem bem a calhar.
Pela segunda vez, cruzou o limiar da porta da casa, humilde sobradinho de sala-quarto-cozinha banheiro e garagem, e mais uma vez espiou o ninho. Quentinho, aquecido, seria possível que um dos ovos já crepitava de dentro? Não, muito cedo ainda. Que bobagem.
Trancou a porta devagarinho. Olhou de fora pela janela seu cantinho, vestida de saia e blusa leve de frio e olhou os galhos da árvore: Lá em cima devia estar a mãe de seus futuros filhotes.
Desta noite em diante, ela disse a si mesma, nunca teremos um jantar igual ao outro. Comprou queijo, comprou um vinho, comprou umas ervas aromáticas; comprou orégano, comprou coentro, tomilho, uns outros molhos diversos. Voltou a cozinhou um belo prato, encheu a esquina de pura luz e satisfaçao. A vizinha abriu a janela e sorveu os sabores da outra, sentiu inveja e cutucou o marido sonolento:
--Vai ter festa hoje de noite, depois vou ver se pego a receita.
O marido voltou tarde: trazia nos olhos a dura lida, o cansaço dos anos e o remorso da tardança. Também remoía o filho ingrato, que sumia por dias e voltava pidão. Era assim que agradecia, o danado? Sentiu o cheiro de longe. Abriu a casa, perfumada de flores, iluminada por velas, o vinho na mesa e os queijos cortados. Era miragem?
Lá fora, dois pássaros voavam; sua esposa não estava, já se via no ar que virara um anjo.
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