Às vezes ela se sentia só; nada de mais, uma vez que a condição humana é essa, basicamente. Ninguém se interessa por você até o momento em que você deixa de ser mais um na multidão e passa a ter, digamos, um comportamento diferente ou se destaca pela beleza, pela inteligência ou pelas boas obras. Mesmo assim e apesar de ela ser pródiga em boas obras, ela sentia o vazio da distância entre as pessoas. Um oco a habitava, era um vazio de não sei o quê. Não que não fosse bela; chamava atenção sua beleza esguia e seu sorriso contagiante. A solidão, no entanto, a assaltava e descobria, aonde os amigos nessas horas? Quem a compreenderia que o que lhe faltava era um pedaço de sua alma, subtraída pelo azáfama do trabalho e da correria despersonalizada de nossos dias? Porque, analisando bem, o que mais fazemos é trabalhar para que outros pensem por nós e de nós; ela estava farta disso e de outras coisas, daí sentia-se só e o oco aumentava, chegando a lhe dar uma sensação de vertiginosa queda, que acalmava tomando um ar na fresca da janela, abanando o rosto afogueado pela idéia da finitude.
Por qual razão tudo finda, perguntava-se afogueada.... Por quê posso passar se o mundo não passa? Melhor, ele passa, mas numa lenta velocidade, como se pedras fôssemos todos, mas as de nossa laia são as mais tenras e depois as mais densas nos fitavam submersas no sono de suas eras e sorriam desalmadas que eram. Malditas pedras que ela tinha por companheiras, nos calçamentos, nas ruas e nos barrancos que olhava sempre à cata de uma delas. Elas viviam soltas e, no entanto não rolavam, suspensas por um fio, um fio que durava milênios. Porquê só ela passava? E porquê tinha de ficar só, com a consciência aguda da matéria, se era espírito puro e sorria, e amava, e chorava?
Ah, ela amava, amava demais, com uma intensidade que às vezes doía, uma dor que superava o oco que havia, daí orgulhava-se de se preencher por inteiro com o amor que tinha e que não era só o carnal, mas era o amor pelo próximo, era o amor pelo trabalho e pela vida que corria entre suas mãos; era o Amor que vinha em ondas e lhe flechava o lúbrico coração, numa mirada que desse ao mais novo moço que conhecera e ela amava, sem saber que a entrega cega e apaixonada só nos traz mais solidão, na medida que ninguém se entrega de todo, senão em partes; todos se entregam em pequenos pacotes e ela, generosa, se entregava inteira para depois perceber que o gajo não passava de uma farsa, como todo farsante que se diz bonito, mas não passa de uma quimera de carne-e-osso. Porque era assim e daí abria-se o fosso e o vazio se instalava; de onde pedir um pouco de colo, se tudo o que fazia era amar sem correspondência?
Sozinha assim e com tudo isso dentro, não era de admirar que poucos lhe trouxessem a satisfação, até porque nesses momentos, preferia caminhar só entre as estantes de livros, percorrendo os títulos com os olhos serenos na livraria que sempre ia quando o oco a dominava. Sentia a pulsão do Infinito e buscava na solidão e no silêncio daqueles livros a palavra que lhe faltava da boca dos homens. Vera (esse o nome dela) era encantadora, olhos castanho-escuros, cabelos fartos e lisos, que ela ora prendia de um lado, ora de outro. Era alta, de modo que chamava a atenção pela beleza do conjunto. Mas como ela mesma dizia, os homens têm medo da mulher que ousa ser inteligente ou independente. Só não imaginam a solidão que isso pode gerar.
--“Ulisses, James Joyce” . Hummm, muito grande. Ouvi falar que Joyce revolucionou o Romance, mas poucos entendem. “Retrato do Artista quando Jovem”...Ah, esse talvez seja melhor.
Sentava-se e lia com avidez o romance que iria comprar e via no livro Stephen Dedalus dar seus primeiros passos rumo à imortalidade. Ah, essa propalada imortalidade, as boas obras que talvez nunca se extingam e que façam inveja às pedras risonhas que por um fio se divertem com nossa passagem rápida, efêmera e revoltante. Já Stephen Dedalus está lá, eternamente na escola, sempre a danar-se na vala humilhante onde se salpica de barro e esgoto.
--E eu? Vera, verdade, veracidade das eras devera. Velocidade à espreita, dizem que depois de um tempo tudo passa depressa e os aniversários se tornam marcos difusos. Ah, Vera. Que vazio é esse que sentes? Passarei antes e Stephen e suas pedras rirão de mim quando for minha vez de mineralizar-me, porque não poderei fazer nada a não ser expirar, inspirar, e comer, e defecar. Eles não: As pedras nunca o fazem e Stephen se o fez, não o diz aqui no livro.
Ela caminhava, já com o novo romance em punho, pesado como uma pequena rocha, leve como o papel insubstituível. Vera, a cidade te espera. Vera, qualquer semelhança é mera coincidência. Não pelos cabelos lindos, nem pelos roliços ombros e pela mirada de lado, quando se desprendem os cabelos e o sorriso ilumina até a mais empedernida alma de rocha que nós, idiotas dos homens, temos. Não.
Agrada o conjunto.
E lá vai Vera, o livro escondido sob o braço, paga com cartão, sai da livraria. Agora o oco é meu, vacila minha alma, tenho a solidão dos dias perfeitos. Volto ao chão os meus lábios e o rosto. Limpar tudo isso vai dar trabalho, Vera. Tudo isso.
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