Ah, carnaval, que sossego. Milhões de pessoas espavoridas fugiram, ando só em meio a folhas que ensaiam um Outono de árvores estrangeiras. A praça iluminada pelo sol tímido estica as sombras e mais de uma vez eu me confundo com galhos/braços/garras. Imaginação ativa, disse minha terapeuta; depois tentar remediar os sonhos. Fazer o quê? A solidão nunca desata os nós de minha vida. Estar só, a uma hora destas, em pleno meio de Carnaval é uma façanha e tanto, convenhamos. Que atire a primeira pedra o folião que já fez isso. Eu sou lá um desses? Que nada, ninguém fica só por opção própria, só os degredados da massa informe que invadiu as praias e agora se refestela empapada de óleo na beira do mar impróprio. Milhões de coxas empanadas ou de bundas que mal cabem nos biquínis em eterna luta contra a Natureza infatigável. Claro que sobram na beira-mar as jovens que esbanjam saúde ou os fortões que imitam os galãs de época. E os tiozinhos que encolhem as barrigas, com uma lata de cerveja em uma das mãos, enquanto na outra está a chave do carro.
Ora, direis, sois pura inveja.
Eu vos direi, acertastes o passo; também o vosso diagnóstico por certo está correto. Mas o mundo, ora direis, muda com frequência própria dos ciclos solares enfurecidos, desses que nos farão de picadinho dia desses, derretendo as calotas e queimando nossas peles incautas, abrasadas pelo turbilhão de ondas que varrem o ar de Fevereiro. Carnaval! Que sossego, caminhar em paz enquanto milhões balançam quadris em revoluteios medonhos, que só os olhos mais cegos não veem. Que o diga a mais pura donzela, a rapariga em flor que não abriu ainda, aquela que exala o perfume próprio das virginais damas que ainda podem ser raras, mas existem:
--Mamãe!
--Que é?
--Vou à Matinê!
Que vetusta palavra! Doze anos, já olha com interesse as tatuagens alheias, a pudica menina. Já escreve em seus diários fantasias a sete chaves. Que ninguém me ouça, mas elas sabem de tudo...
--Dá pra você me ajudar?
A voz partiu de uma estátua que se move. Os olhos castanho-escuros miram-me de baixo para cima. Os cabelos são escuros e a fantasia de odalisca lhe ressalta os traços suaves. A boca sorri com facilidade, a moça se encontra em dificuldades. Seu olhar indaga e ao mesmo tempo mede.
--Em que posso ajudar?
Chegar perto de uma menina assim é um privilégio. E tome perfume suave. E aquele olhar que encarna o próprio pecado. Ah, Carnaval! É todo o encanto. E a morena continua ali, impávida, me olhando, cobrando uma explicação que não existe e ao mínimo movimento, as franjas do vestido esvoaçam e tilintam os guizos de sua roupa. O que é que eu faço?
--O que é que eu faço?
A voz sai aveludada e o sorriso maroto vem com toda a malícia.
--Você é um nerd, mas pode me ajudar.
--Que eu faço?
--Estou atrasada. Desfilo em breve, saio no bloco...
--...Das odaliscas.
--...Gênio. Falei que era um nerd. Eu já sabia. Mas então, não consigo amarrar sozinha aqui atrás.
E vira de costas. Carnaval! Eu me engano, essa morena está me atentando. Amarro a fímbria que lhe faltava; a roupa lhe cai como luva, ela sorri de volta e eu me sinto bem, afinal. Só agora eu percebo que já sinto falta de seu sorriso e de seu perfume. E ela se afasta, alguém a leva para a festa. E eu olho o sol que nasce, ardente.
Já não fico mais só.
Não é de estar contente?
E um arlequim passeia com a flor, um esquimó fantasiado em beija-flor, um menino complicado dá um beijo na moça que vira de lado, agora não! Somos estranhos, e o menino cai no samba enquanto a porta-bandeira se esmera no passo. Cai o laço no pescoço do palhaço, que olha pra cima e sorri: A Avenida é seu passo. Ele sorri.
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