"Tudo começou com o Degelo. Já há algum tempo os gelos deserdavam da Terra, deixando os antes Alpes mais com cara de Mantiqueiras e os Andes calvos. Tudo se espetava no ar calmo da paradeira. Nesse degelo é que surgiram os principais problemas; Fora as cidades mergulhadas em pura água, pequenos inimigos recomeçaram sua vida no antigo Planeta Azul. Pequenos inimigos da alma, corrosivos, invisíveis e sorrateiros. Estes inimigos se plasmavam em tudo. Seu trabalho começou nas grandes estradas do Norte desenvolvido, dizimando arbustos invencíveis. Mirraram todos. A seguir, rodas de caminhões se esfarrapavam em minutos. De quê adiantam rodas sem seu segredo emborrachado?
Mas o Homem prossegue sua tarefa hercúlea. Sobrevive, mesmo em inóspitas paragens. Conquistou tudo, até o direito de ver o que não se deve. Foi então que começaram as tribos loucas. Gente de todas as cores simplesmente iniciava a caminhada, on the road, livres e soltos. Sem vínculos nem paragens. Milhares abandonavam seus empregos e em nome do Amor, partiam absurdos. Queriam ver de perto o que acontecia sem rodas de caminhões ou carros. As hordas se juntavam a outras que se misturavam a tantas que se tornavam milhões.
Os cientistas tentavam decifrar seu modus vivendi. Somente viviam. E caminhavam, sem parar, sem destino. Motoqueiros tentaram seguir os destinos daqueles loucos, mas sem rodas de borracha, como ia ser? Nada feito; estes caminharam para o sul. Eram as multidões motorizadas do crepúsculo. Foram todos se espalhando, levando as mocinhas na garupa, leaving home, bye bye. E nunca se viu tanta gente junta, separada dos pais. Rumores corriam que o Degelo abrira a caixa de Pandora, essa maldita que decidiu que a Esperança seria a última que morreria. Ah, e as cidades viraram paraísos aquáticos; onde houvera a seca, agora havia chuva em abundância. Onde houvera a paz, agora havia o medo. Onde houvera liberdade, agora grassava o degredo.
E sobrevive o Homem, esse ser superior, átimo da criatividade divina; adapta-se a tudo. Foi então que surgiram os Vãos Escuros, onde se construíram os lugares aonde não chegassem as águas, nem as motocicletas, nem os caminhantes livres. Quem ainda pensasse que era pouco, sabia que um pesadelo que começa pode ter um fim mais infame. E nesses vãos, nas frestas da Terra Encardida, surgiram as suspeitas do que já se sabia: Eram os Inimigos Invisíveis que haviam invadido o que restara.
Agora já se sabe, através de fragmentos imperfeitos da época, que os últimos homens agora se refestelam ao vento gelado de uma nova era do Homem."
--Vovô, e como começa o Homem?
--Querida, onde termina o Abismo.
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