Chuva na rua. Cataratas de folhas amarelas, carregadas na enxurrada. Outono já pleno, olhos enxutos. Os dois amigos conversam, um deles em crise existencial das bravas.
--Vê? O que há é isto, apenas matéria. O princípio de tudo é a reação química, que une os átomos, que trazem a chuva...Não passa disso. Somos matéria quantificada.
--Ví um homem perder sua fé. Ele está em minha frente.
--Bah, e de que vale a fé? Serve para aumentar a esperança que no fundo é um sentimento, produzido em neurônios.
--Não creio, sua visão é muito reducionista. Segundo você, a chuva, as folhas, tudo é matéria. Mas é na matéria que mora o espírito das coisas. Ele permeia os quanta. Nada no Universo passa sem a sua marca indelével.
--No fundo, matéria.
--Bem ao fundo, espírito. Ora, se se prova que energia se condensa em matéria, porque não se pode um dia provar que há algo mais além que interações quânticas?
--Baboseiras sentimentais. A fé foi um sentimento inventado pelos espertos sacerdotes antigos para tanger o gado humano; uma maneira de controlar os nascimentos, uma vez que a escassez produzia a fome.
--Você não pode ver que, além das religiões, é possível que exista algo de mais tênue que a própria existência da matéria? Isto é, neste Multiverso, existiriam indeléveis sensações de antes mesmo que a própria existência.
--"No Princípio..."
--"Fiat Lux".
--Você acredita mesmo Nisso?
--Antes da crença, eu acredito. Não com a razão, mas com meu coração...
O garçom olha a mesa. Vê se ele está interessado em quanta, neurônios, Baghavad Gita, Antimatéria e pósitrons? Ele caminha apressado entre as mesas. Porém, sempre que aqueles dois vêm , ele ganha mais algum. Porque um é materialista e para ele, na matéria reside o lucro, com a mais valia. O outro é mais espírito, de tal forma que é dele que vêm os pedidos mais suaves e sempre com uma entonação respeitosa; não que o outro desrespeite, é apenas mais pragmático. Ele tende a ser mais pragmático também, mas nunca deixa de optar pelo espírito...
--Garçom!
Lá vai mais uma rodada de Ambrosia. Júpiter afia seus raios, que caem em chuva meteórica sobre São Paulo.
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