Estou andando, sabe. Andar é uma parte das minhas habilidades, eu penso irônicamente, porque das outras eu sei e costumam estar., a essa hora, ainda dormentes. Isso porque ainda é cedo, mal me vesti das cascas do tempo. Não é verdade que roupas são cascas do tempo? Tem umas que são cascas do dia, outras são cascões da noite. As mais voláteis são as cascas da madrugada, eis porque sonhamos, voadores em palavras.
Voltemos ao andar, preciso comprar coisas, a vida não se resume a cascas, cascões e volatilidades. Práxis, meu bem, práxis. Isso me ensinou minha vida, os diversos lutos que eu tive, as diversas maneiras de ser e pensar. Onde se compram coisas senão nos mercados? Lá há latas, ferragens, palhas de aço, sabonetes, vertigem em frascos, voláteis perfumes...Terra.
Vejamos: Café, chá. Queijo...E passa por mim uma moça, eu diria que a moça passa e atrás dela tem uma sombra que arrepia, uma sombra coisa quase que gosmenta, um visgo que a acompanha. Talvez por isto ela se desequilibre, mas passa por mim e procura; procura uma gôndola, procura um produto que mal vê. Os olhos vermelhos, eu presumo por choro. Eu a sigo com os olhos, o andar é trôpego. Bonita, veste uma calça jeans apertada, tem uma camisa leve solta colorida e traz os cabelos presos e faixa prateada. Os olhos vermelhos de tanto chorar. Eu não sei, talvez o visgo, talvez a sombra...decido acompanhá-la, ela procura. Aproximo-me.
--Quer ajuda?
Do alto dos olhos vermelhos, ela fixa meus olhos curiosos.
--Preciso. Você sabe onde tem...pasta de dente?
--Sei, é bem ali.
--Obrigado...
Ela vacila, reprime um choro. Pede ajuda com todos os póros, ela precisa de um ombro. Mas resiste, é a força que a mantém de pé.
--Moça, você não está bem.
--Decididamente, não.
--E por quê quer pasta de dente?
Uma pausa de sonhos, uma secura repentina, o ar se rarefaz e o visgo, a lágrima de sangue se refaz no abismo que há entre nós. Imagine a distância enorme entre um desconhecido como eu e uma moça bonita mas que tem olhos vermelhos e que reprime a custo um estouro que denunciaria toda sua cruz, toda sua solidão. Como somos infelizes e a razão da infelicidade somos nós porque a felicidade é só um instante cósmico. Nossas escolhas sempre tendem à felicidade que nunca existe inteiramente; isso é o que nos convém nesse mundo enfermo.
Ela me olha, sinto que as barreiras se dissolvem, o gelo quebra e ela cai em prantos, pedindo meu apoio. Eu a abraço ternamente. Podia ser minha sobrinha, talvez minha filha; eu a abraço e ela chora convulsamente, as pessoas olham torno, talvez imaginem que ali se passa um drama e ninguém mais se importa, continuam a comprar suas carnes enlatadas e seu laquê. Pode cair o mundo, se mil caírem ao teu lado, dentro do mercado não será atingido. Se outros dez mil caírem à tua frente, a mão protetora do consumo sanará teu desgosto e você se empanturrará com biscoitos e esquecerá para mais de amanhã a moça que lhe pediu ajuda. Mas a mim, ela pediu um pranto e eu lhe dei um ombro...
--Mas o que acontece???
--Quero que meu noivo leve essa pasta de dente para a namorada dele para que os dois sejam felizes um com o outro; porque eu vou me matar.
Matar-se. Decisão dura, findar com a própria existência. Extinguir-se num clarão, aós um cigarro, com um tiro ou com cicuta digressando sobre a imortalidade da alma ou após um vinho raro, pulando de uma ponte. Finar-se, após subir ao teto do prédio e contemplar o sol raro pela última vez. Matar-se, resumo de tudo para ela.Por quê?
--Porque eu quero. Porque viram meu noivo, que ia casar comigo em três dias, beijando uma sacana bem berto daqui. Porque me falaram. Eu não vejo mais sentido na vida. Quero matar-me.
--Desculpe-me, mas como pretende fazer isso? Matar-se resolve o problema da maneira mais fácil!
--Como?
--Sim. Melhor morrer a enfrentar a vida e tudo que ela pode trazer de novo e bom. Veja! A escuridão te espera, o sono sem sonhos que te redimirá.
--Mas mas...
Eu a ví hesitar, como que um frêmito se apossou de seu corpo. Ela se moveu atônita, pegou o creme dental. Olhou em meus olhos...
--Por outro lado, se viver, eu acho que você bem que poderia fazê-los beijarem-se sem parar...
--Como?
--Super-Bonder.
Ela me olhou a princípo confusa. Mas seus olhos se abriram num sorriso impossível, ela de repente estourou em uma enorme risada!
--Super-Bonder??? hahahahahahahahahahahahahah!!!! Não acredito!!!!!!
--Um beijo coladinho! O problema é o transplante de bocas depois.
--Ahahahahahahahahahahahahhaha, figuuuuura!!!!!!!!!!
--Não conseguiriam tomar café separados. Ir ao banheiro então...ia ser um problema a resolver.
--Não acredito!!!!
Abraçou-me, dando risadas. Seu corpo assumiu outra postura, sorriu para mim. Disse-me que eu havia salvo sua vida.
--Vamos, você é tão jovem, que acha de recomeçar a vida? Dá um chute para cima. Esse camarada não te merece. Deixe estar.
--Sério?
--Sai dessa.
E fomos comprar as coisas que ela realmente precisava. Era outra moça, os cabelos antes mudos agora ressoavam de brilhos entre as gôndolas; os olhos, antes opacos e vermelhos despediam chispas de luz e vontade. Ela me contava de seu curso de psicologia, o trabalho de TCC que deveria defender em breve sobre análise de sonhos, uma mistura de Jung, Freud e Lacan.
Eu lhe sugerí um vinho francês. Ela aceitou o vinho, sorriu e prometeu, num último abraço, que ia refazer o seu sonho. Ela saiu, rindo e disparando de longe...
--Figuraaaa!
E eu saí pensando na vida efêmera que vivemos.
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