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cronicas-->Dados -- 18/06/2014 - 21:26 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

No momento em que eu escrevo, eu revisito as ruínas de mim mesmo, aquilo que já foi um dia meu palácio de cristal. Posso dizê-lo assim, uma linda construção de aparente fragilidade mas sólida como a mais fria das rochas. Eu encarava os problemas comezinhos como antinaturais, isto é, viver, comer, manter-me: era minha sina, não o destino final da raça humana. Como eu dizia, um palácio de cristal jadeado, uma joia rara de se viver dentro. Esse era meu mundo, até que, por força de uma circunstância , tudo foi subvertido e eis-me aqui a contar-lhes o que restou das torres de marfim, dos quartos almofadados e do perfume de jasmim que habitava as salas cercadas de lindas pedrarias. 

Só restei eu e meu abismo, um olhar esgazeado em frente onde pulsa a linha de meu horizonte num ritmo monótono que flutua acima de mim sem que eu possa desviar do foco. Eis aqui o que restou da transparência absurda que, em todas as manhãs, inundava meu quarto de ternura e compaixão. Eu sempre o digo a mim mesmo: Foi um sonho? Ou o que eu vivo agora é um sonho, cercado de sonhos de sonhos mesmos, uma parede de sonhos onde pulsa meu olho boiando inteiro dentro num espasmo de olhar a fixar a linha verde que flutua, flutua sem parar enquanto eu ainda respiro? Pois é assim que eu me vejo agora e quando assim me fito, eu olho para cima de mim e consigo entrever seu sorriso, o sorriso daquela que seria minha cartada final, uma espécie de êxtase do cisne glamuroso, aquela última jogada do viciado em dados que pode mudar todo um destino, absorvendo em uma volta plena o que toda uma história condensa num átimo; aquele momento em que todas as respirações ficam em suspenso,olhando os números que mancham a luz baça do veludo verde:

--Seiiiiis!!!!!

Número maligno, grotesco, enquanto gira nas cartas, seis de paus, seis de pedras batidas pelos ventos, seis amálgamas de ouro e chumbo, seis ofegantes minutos de delírio, seis anseios...Número da besta, oh pois sim. São seis os copos que levam à catástrofe, seis murros certeiros no queixo, seis gotas de sangue que enodoam a mesa de mármore, são seis os anões e menos um que saiu com ela às seis em ponto. Lá está a linha maldita, verde-fósforo que mancha a nuvem que se forma entre eu e o mundo, olhar fixo e às apalpadelas, que é a hora do grito final, entre os travesseiros que eu escolhi para morrer, entre seus braços tristonhos. Eu bem o digo, tudo tem hora para ocorrer, eu bem o digo. E lá está ela, sorriso absurdo de lindo, olhos de cristal de açúcar, colados nos dados que saem das mãos do jogador, lá está ela que nunca me enganou. É ela, a própria que tem mãos de veludo e que vem sempre de manhã, com suas cálidas palavras adocicadas em meus ouvidos já meio surdos, talvez de tanto ouvir o zumbido das nuvens; lá vem ela e os dados correm na mesa de feltro verde de novo...

--Seiiiiiiiisssssss!!!!

E as nuvens se exaltam em rápidas evoluções, conformando-se caóticas no teto abobadado de meu último sinal de vida, essa capela sistina onde pai, filho e espírito santo se confundem aos mais densos e pródigos santos do futuro. Eu bem o disse, sabia que seria assim mesmo quando olhei ao teto e ví Deus criar e separar a luz da escuridão. Seu dedo então cria o Homem e à sua direita repousa Eva, criada da costela de Adão. Meu barco deriva e lá está a maldita linha fixa, num ponto de luz que eu abomino porque, se eu parar de olhar, já o sei: Virá a doce luva e me fará rodar a dança de minha finita paixão.

--Mais fichas, senhor?
--Mais. Tudo no...
--...Seiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiisssssss!!!

Obrigado de novo pelos sons de Mahler, talvez pelas maravilhosas sinfonias de Beethoven, ou as Cantatas e motetos de Bach. Sempre quis saber dos motetos, o que seriam? Agora os sei com essa definição que o momento me permite, porque nessa hora da estrela ( a que pulsa à minha frente, tela-fósforo-vertigem) eu posso imaginar libertino que seus seios ainda arfam por mim, ó jogadora de virgens lábios, oh menina dos sonhos absurdos, que passeia no tapete verde de minha fosforescência, que tem jade nos dedos; que vagueia no aquário de um quarto distante, que revoluteia sob o plasma de um dia melífluo, numa voz oca e penetrante que diz:

--Seis miligramas.
--Bastará?
--Seis.
--Quantos anos você tem?
--Seis.

E quantas vezes eu o disse? Lá está ela, que joga dados nas nuvens e me espera do outro lado do Estige. Lá está.

--Mais fichas, meu caro. 

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