Um homem caminha no meio-fio do nada. Do outro lado, as alturas vertiginosas. Embaixo, carros correm sem nenhum pudor. Transeuntes param abismados, bocas abertas em sorrisos pasmos. Meninos gritam com vozes esganiçadas e alegres, mulheres da vida se amontoam em janelas próximas, velhinhas suspiram pela coragem dele. Ele caminha no sólido pedaço que lhe resta de vida. Vai saltar, dizem uns, vai pular, dizem outros. No lado de cá da vida, seguros pelo caminho do viaduto, passantes estacam absortos pelo espetáculo. O homem parece decidido, o que o une ä sua vida miserável ainda são os breves diálogos que mantém com os homens da lei.
--Cidadão, venha para cá, cidadão.
--Cidadão, você é surdo? Você é surdo?
--Cidadão, não faça isso.
Os homens da lei não entendem que o cidadão não lhes dá a mínima. O tal cidadão nem o é, tal a sua estima. Perdeu o dinheiro, perdeu a vida, a família o exila em um quarto. Ninguém o visita, a esposa morreu e os filhos o consideram um traste. Daí, cidadão, melhor caminhar nas alturas do abismo. Pensar que um pássaro faz isto todo dia, cidadão!
--Cidadão, fique onde está!
--Tu é surdo, cidadão? Fique bem aí.
--Merda, mais esta. Esse povo enlouqueceu.
Nisso, em meio à multidão, toca um celular. Fala bem pausadamente um outro cidadão que prefere ver um braço arrancado, desde que não seja o dele, a estender o seu em ajuda.
--Aló? Ah, ói, não vai dar preu chegá nas parada. Ói, eu tó bem aqui, no viaduto dos mano velho. É, o pixadinho. Não, tó falando sério, ói. Não vai dá mesmo. Tem um tiozinho, ele vai se atirar. É, é mesmo. Vai sair aí nas parada. öi, eu tó dizendo, vai ter de pegar o pacote só com os caras de lá. Eu tó aqui, parado...Verdade. Verdade verdadeira, juro pelos meus bagos. O tiozinho tá pendurado feito um pombo. Falta um tantim assim prele pulá. Ói, vai pulá. Ói!!!
O tiozinho, negro, cabelos grisalhos, ameaça um salto, muitas vozes se elevam, gritinhos de mulheres impávidas saem das janelas, todo mundo quer um dia de fama. Tem gente acenando para as càmeras; outros filmam de celular e os homens da lei, ora, estes tentam demover o trágico traste, o finório que atrapalhou a tarde fresca, o malandro que decidiu cometer o pecado capital em si mesmo. Lá vai ele, ou melhor...Ia!
Um bombeiro agarra o meliante pela cintura como um caranguejo. Agarra o pobre suicida e o prende a esse mundo mais uma vez. Tudo lhe volta no espírito, então, porque bastaria ter esticado a perna e, bum, acabaram-se os maus tratos e as humilhações; filhos só teriam dele as lembranças, noras nunca mais o desprezariam; seria o sono eterno de uma mente sem lembranças.
--Ói só: O herói garró o tiozinho pelas ventas. Já agora ele vai é preso, por desordem aqui. Algemaram ou marraram ele; ói só, ele está falando. Ouve só, ouve só...
--Trastes do mundo todo, uní-vos. Em verdade, em verdade vos digo: Amém, obrigado senhor, eu vos prometo uma coisa: Pássaro serei que nem asas tem, pássaro, vingar-me-ei e fabricarei asas qual ícaro e alcançarei as alturas inomináveis e derreterei no abismo toda minha vida pecadora. Pois que agora é tarde para recuar; é tarde.
--Ói, véio. O tal se endoidou. Bom, estou indo. Tem gente demais aqui. Muito aplauso. Muita muvuca, mano. É nóis.
A multidão se desfaz e o velho e pobre imitador de pássaros, esse traste, nem sabe o que lhe aguarda em casa.