--Afasta a cortina um pouco.
--Incomodando a luz?
--Em absoluto; é dela que preciso!
O cheiro do éter pousava no ambiente; dir-se-ia adocicado, benevolente. Uma espécie de rosa ao avesso. Havia no quarto obviamente um buquê de rosas, mas a enfermeira já o deixara de lado, compreensiva. Sabe como é, germes, sementes, folhas; coisas que não combinam com assepsia. Ele abriu a cortina. O sol passou a iluminar o quarto em uma língua que ia do pé da cama ao pequeno espelho onde criava uma confusão de cores refletidas. Cores de um arco-íris que com o movimento das esferas do mundo, criava um ambiente próprio.
Ela virou-se para a luz e compreendeu a similaridade daquela estreita faixa com sua vida toda; no espaço de um segundo, compreendeu a visibilidade de tudo o que vivera até então e soube, por um instante só do quanto havia de cores ocultas no espectro do que dissera viver e não soubera sentir. Ela e as flores procuravam a réstia luminosa da janela como girassóis; toda flor faz da luz sua marca e impressiona o mundo com suas anomalias de cores. Toda flor é uma anomalia no mundo, todo girassol procura as réstias fantásticas, toda abelha procura uma flor e o mel que produzem passa por luz adensada em açúcar. Ela virou-se e contemplou o azul do céu com esparsas nuvens, cirros brancos e velozes. Não compreendia como chegara até ali( não se lembrava ainda), entendia só a transitoriedade de tudo.
Pequenos barulhos a faziam concentrar-se: Uma revista virada folha a folha, na tentativa desesperada de diversão daquele que está a um passo de chorar mas não pode; um tilintar de fios, uma gota que cai como mais uma condensação de imagens e vai, veia adentro, parte a parte, revivescendo-a, vivificando-a, fazendo nascerem nela novas pétalas, novas asas que a safam de abismos que há pouco a ameaçavam. Um pequeno ganido, é o vento passando por baixo de uma distante porta, a cortina que se mexe; ela faz que sim com a mão, ergue-se o dedo, ela esperava pegar o fio finíssimo que passava como uma teia de aranha tecida por ínfima glàndula de mínimas patas; oito olhos a contemplam numa curiosidade crescente e ela pode ver por eles que está pálida, mas está bem. Agora, o pior já passou. Tudo que é transitório agora vira perene, uma certeza do que fica ao lado. Vira a cabeça que ainda dói, vê quem está ali. A revista farfalha e, com a mirada, suspensa no ar, as mãos se congelam.
--Precisa de alguma coisa?
--Não. Somente queria dizer algo...
Remói as palavras que sustentam pesos enormes. A palavra, essa magia, a linguagem, essa distància que nos faz próximos, a articulação delas em frases, um exercício tão inconsciente que mal se lhe damos valor e só assim, numa situação que como essa reduz as velocidades dos tempos internos, só assim é que valorizamos cada sílaba do que podemos ter como certo ou errado; dizer algo se torna um achado, fazer-se entender cria um encanto novo e , como se fora de novo uma princesa minúscula a resmungar sons inaudíveis, ela diz, entre dentes cansados que refletem a luz da alma de melhores dias:
--Obrigado por estar aqui, comigo.
A revista cai no sofá verde. O vento asperge os aromas do mundo: Um restaurante insiste em fazer assados de carne; pássaros dão asas à alegria. Quem lia agora levantou-se a abre mais a cortina. O céu mais azul ainda combina com os olhos daquela que, extasiada, compreende a finitude de tudo, sem palavras por ora.
--Estou aqui e sempre estive. Sempre estarei.
O sono vem, como uma bênção.
Mais tarde, a chuva virá num assomo, enquanto suas pétalas se fortalecerem, para que ela ande de novo entre os girassóis luminosos de nosso vasto viver .
Para Marise Engel Baptista, minha cunhada querida.