O camarada remexia os papéis da antiga seção da biblioteca onde trabalhava. Deu com um papel amarelado, grosso pergaminho, várias folhas sobrepostas. Ele, que trabalhava naquela seção há anos, jamais tinha sequer passado os olhos por aquele documento; vai daí que sua curiosidade, espicaçada pela provável antiguidade do tal manuscrito acendeu seus olhos de lince sobre ele. Claro está que não há, aqui, nenhuma sugestão de desonestidade por parte de nosso modesto herói. Ele apenas cumpria a árdua tarefa de arrumar os papéis, os escritos, velhos documentos empilhados sobre sua área de trabalho e, por assim dizer, ia "dar uma olhada". O que é que há? Curiosos? Querem saber o que havia lá? Vejam bem, ponham-se em meu lugar; é ele que lê o documento, sou eu que o descrevo lendo e ele provavelmente, absorve-se incrédulo no que lê, com olhos cada vez mais abertos, esgazeados, por assim dizer. Olhos de jabuticaba, como dizia sua velha avó. Olhos de espanto, diria um Poe qualquer. Eu digo que eram olhos que, ao ler tais disparates( e por quê não dizê-lo?), talvez julgava melhor o mundo ou talvez soubesse que seu destino poderia estar selado, uma vez dando créditos ao autor de tal missiva.
Missiva, sim, tratava-se de uma carta escrita em resposta a algum outro missivista, arquivada com cuidado, como se assim fosse para não ser lida ou, sequer, tocada. Há assuntos que nos tocam demais, penso eu, há assuntos que merecem a proibição, diria um censor do Estado. há também assuntos que devem ficar ocultos à massa ignara, na qual me incluo, antes por serem assuntos de extrema delicadeza ou, mais ainda, por serem assuntos dos quais não temos a mínima noção e a depender de como estão colocados, podem subverter nossos mais íntimos pensamentos e nossas mais arraigadas crenças.
Pois bem! Já concluo essa, digamos, introdução. Vai adiante o que nosso pequeno trabalhador, em sua pequena escrivaninha empoeirada, perdida em enorme labirinto de uma antiga biblioteca, lia com olhos inicialmente incrédulos, depois...
"Em resposta à sua anterior carta, meu caro amigo: Não se trata, aqui, de defender posições supostas de outrem, trata-se de uma exposição de minhas posições claras e cristalinas. Gostaria de dizer algumas delas a mais, se é que me permite fazê-lo; Tanto se me faz também se não o fizer pois eu vou expor minhas idéias. Refute-as se as ler e discordar, mande-me outra carta quando puder ou, se lhe der na telha, queime-a. Pois bem, você me fala de Deus, eu lhe digo, se há um poder maior que o de Deus na Terra, é o poder do dinheiro. Este é o verdadeiro deus da humanidade. Desde que as mulheres há milhares de anos passaram a cuidar das hortas e alimentação e os homens passaram a fazer a guerra, a coisa vem se modificando. Apareceu o escambo mas, com as guerras, fizeram-se as armas e a Sociedade tribal de caça-coleta passou, gradualmente, a se relacionar com outras, seja através do trucidamento ou, como mais tarde se verificou ser mais produtivo, o comércio. Inicialmente, era a troca de uma mercadoria por outra. Daí, surgiu a Moeda de troca. O dinheiro. Daí, gradualmente, esse demônio se apossou de cada ser nessa terra desolada. Tudo se faz por esta razão.
Digo-lhe mais. A religião surgiu como uma resposta à pergunta essencial, que é a de se saber qual a razão de nossa vida. Porém, sempre que a fé surgiu, foi para incutir nas massas ignaras uma fé que lhes convém. Em toda a história das fés, seja no catolicismo, no Janaísmo, qualquer delas...Ora, você me desculpe: Enquanto os autores da fé justificam que essa não é a vida verdadeira, que tudo virá um dia, com vinte virgens no Além ou de que, uma vez morto, ressuscitará o espírito em outro mundo mais justo que este...O Homem comum trabalha de sol a sol.Isto é tudo o que se quer para que os homens se sintam ávidos a trabalhar. Em nome de quê? Em nome de uma outra vida, uma vida mais além da mediocridade desta. E ajoelham-se todos perante os poderes do Deus-Moeda; troca-se a fé por uma vaga no Paraíso. Há os que justifiquem o dízimo! E você vem me dizer que a fé é que move o mundo? Há, sempre que pode, o interesse econômico. Sempre. Este é o verdadeiro Deus do Mundo. As guerras são frutos de choques entre economias divergentes! E não vá me dizer que outros podem estar certos! De um lado, acumula-se enormemente em mão de poucos, de outro, acumula-se tudo...Em mãos de poucos!!! Há sutileza nisso?
Milhares de mãos se levantam, rezas e canções e os massacres se superpõem!! A História humana não passa de uma sucessão de massacres, dizimações, enormes apocalipses de sangue...E o Cordeiro que tanto se apregoa derramou o dele várias vezes mas infelizmente, não redimiu todos os nossos pecados. A Indústria da Morte se instalou em todos os cantos! Como, diga você, como se justificam os Torquemadas, as torturas horríveis e os perjúrios em nome de...Quê mesmo? Ah, a fé em Deus. Isso mesmo, meu querido. Assim fica mais confortável."
Nosso leitor deve estar horrorizado...No entanto, há de concordar em que nosso missivista fala um tanto de verdades, misturadas talvez a um vazio, um oco em sua essência...Uma tristeza, talvez derivada de vivências que teve...E que oculta em sua arrasadora resposta...
"Em outro de seus assuntos, você me falou de um outro poder que grassa no mundo. Eu concordo em parte, mas há um poder maior ainda que o de Deus e o da Moeda: Enfim, eu lhe falo da Morte. Esta virá e será para todos, independente de classe, cor, sexo ou classe social. Ela virá! Esta é a realidade única da Vida, que é como você a chama. Vida! Mas o que é a vida senão um recear contínuo da morte? O que é a vida senão uma sucessão de mortes que já ao nascer se inicia? O primeiro berro pode ser o último vagido. Tudo o que se lhe sobrepõe é mero arremedo. A vida, tal qual nós concebemos, é uma artificialidade toda, um creme doce que fazemos para entreter nossos espíritos contra o último lampejo e clarão. Daí o rezar contínuo, a defesa que se faz em nome do perdão. Perdão de quê? De que temos culpa?? Todos temos culpa? Ou será esta culpa a que nos é incutida desde que nossos pais e os pais deles, ad nauseam, definiram os limites do que podemos ou não fazer? O que podemos fazer? Onde estão os limites? Cada tempo os tem, e cada dia cria-se nova figuração, cada ano se soma mais um pecado, de tal forma que ao fim dos tempos, teremos mais pecados que boas ações. Segue-se daí que jamais saldaremos nossas dívidas com o Infinito, em nome de nossa continuidade...E erguemos mausoléus para preservar o que de nós sobrou, e tudo não passa de cinzas!!!!"
Um assombro, um tremor se apossa de nosso pequeno bibliotecário. Seus olhos estão abertos e atentos. Algo dentro dele rui, como um edifício de cartas de um baralho. Tudo em que ele acredita está ruindo diante da inexorável argumentação do missivista; imagina o peso que tem seu interlocutor, passa a se ver escrevendo tal carta, passa a enxergar suas mão empunhando antiga pena, mergulhando o bico no tinteiro, enquanto chora lágrimas de sangue. Há ali, é certo,muito mais a ler, no entanto. E nosso pequeno funcionário reage, fecha a carta...E desliga a lâmpada de sua seção.
"Por ora, esse é o assunto que tenho; tente mandar-me sua resposta vã. Eu a aguardo ansioso, como a mãe aguarda seu filho que nunca chega do campo de batalhas do mundo".
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