Abanando os cabelos engalfinhados em luta contra o vento ineficiente de um ventilador meia-tigela, ela se segura para não gritar de horror. Seu marido ou seja lá o que jaz no sofá empapado de suor está lá, o copinho de cerveja gelada respingando no tapete limpo da sala, até agora, depois que o cachorro morreu de sede repentinamente. Há um bafio no ar e definitivamente, não é perfume. Lembra mais aqueles odores vindos de trens superlotados. Repentinamente, ouve-se um estrondo inominável. A pobre mulher, já abalada pela perda do cãozinho e do contínuo gotejar de seus poros desobedientes, agora está Ã beira de um ataque de nervos, a tal "febre nervosa" de que tanto falava Dostoiévski em "Karamázov". Ela quase cai da cadeira, desiste a tempo, pois que escorregará e aí, sim, correrá sério risco de complicar-se.
--Que barulho é este?
O marido ou o que quer que seja que se confunde a uma massa de pelos amorfa, embarrigada e inerme, geme de volta, em sua habitual concentração masculina( eis porquê as mulheres, nessa eterna luta contra nosso sexo, detestam-nos assim que nos tornamos cúmplices de outros semelhantes seres):
--Que barulho?
--Como, que barulho? Você é surdo? Ou tornou-se mais surdo. Ou, além de surdo, é burro; não sabe ouvir não? Ou será preciso desenhar?
--Espere um pouco, estava vendo...
--..Essa porra de jogo, aí. Assim como outro dia, quando morreu meu cachorro, ao invés de deixar água, foi comprar a cerveja.
--Isso não é verdade, totalmente. Havia água, sim. Só que ela bebeu demais e ficou sem. Foi assim!
--Sim, sim, foi assim. Mas ela morreu. E esse barulho?
--Ouvi algo.
--Parece ter desabado um prédio!!!
O tal navio sai de sua inércia e vai à janela do apartamento onde um halo de calor o agride mais que as palavras ditas em jorro por aquela mulher estabanada. Nada pior do que a violência contínua verbalizada. Torna-se uma ferida crónica e agora, então...
--Ah!
--Dá para me dizer o que foi?
--Mais uma árvore caída. Aquela Tijuana da frente do prédio ao lado.
--Tijuana??? Não seria...Tipuana?
O tal saco de vermes coça seu semelhante mais abaixo e , consciente de sua inferioridade em matéria de arvoredo, concorda.
--É, é, Tipuana. Aquela ali, ó!
Ela acorre à janela, morrendo de medo de ser avistada por alguma vizinha que, além de constatar a óbvia semelhança de seu marido com um destróier, vai vê-la de cabelos em pé por causa do mal afamado ventilador que não faz nada além de enrolar seus cabelos em confusa maçaroca. Cada vez mais irritadiça, ela exclama, com classe:
--Ca-ra-lhooo!!
--Ah, com esta, são 13.879 árvores caídas. Normal.
--Para você, tudo é normal! Tudo! Um beijo na boca de dois tatus é normal, uma lebre aparecer em nossa sacada pode ser normal!!! Tudo!!
Ela beira à histeria e seu humor beira à confusão mental. Ele manda goela abaixo mais um gole da...Preciosa...
--E só sabe fazer isto. Tinha a tal da seladinha, antes era uma tal de vagabunda...
--"Devassa"...
--É, é, agora essa tal de charmosa.
--Preciosa!
--Precisa ficar discutindo tudo o que eu digo?
--Só estou corrigindo!
Ele fala com certa ironia que é comum aos que tentam manter o controle sobre as coisas, mesmo que a tal coisa beire uma erupção de um Vesúvio dormente, embora ele saiba que a temperatura já se assemelhe à de uma fornalha de magma.
--Querida, você está muito nervosa!
--E não é para estar? O mundo caindo, derretendo, o prefeito fazendo pistas de ciclovia e as nossas árvores caindo de cupim e você aí, todo pimpão, de Preciosa na mão, vendo...essa coisa!
Na tela da tal...coisa, um modorrento empate de dois times que se arrastam em campo, jogando de lado para evitar um vexame maior; também, quem pode culpar os jogadores por tentar jogar futebol debaixo de uma torradeira cósmica? Dois já caíram em campo e foram socorridos: Insolação! É exigir demais desses coitados que ganham um milhão de cruzetas por mês. Deviam fazer o que fizeram com a São Silvestre: Na impossibilidade de continuarem a correr de dia, agora as provas voltaram a ser de madrugada. O problema é que muitas delas já foram verdadeiras corridas sob monções. Maldita chuva noturna!
--E a água que não volta?
--Culpa da fornecedora.
--Há anos sem água agora!!! Já falei, arranja um emprego longe...
--..Aonde? Aonde, agora, diga-me? Lá no Nordeste? O São Francisco secou de vez. Lá ao Norte? Amazónia com 120% a mais de desmatamento, não dura cinco anos. Pico da Bandeira? Lá não tem emprego. Sul do Brasil, com seus tornados gigantescos? Casas destelhadas? Cidades inundadas? Plantações arrasadas? E você quer que eu faça o quê? Trabalhe de gari?? Aqui pelo menos ganho algum!!!
Ela, atingida no cerne da questão--dinheiro, claro--cala-se por um momento, suspendendo a metralhadora verbal giratória. Os dois tomam fólego e ela, finalmente, percebe que passou dos limites de novo. Ele enche mais um copo e o oferece a ela. Ela olha a televisão, sob a imagem do modorrento jogo, mais notícias sobre os atentados em Roma, Paris, Barcelona, Nova Iorque, Amsterdan e Cracóvia. Ela está nervosa, não conseguem engravidar de jeito nenhum, ela sabe que não é só seu o problema ( muitas amigas suas relatam a mesma esterilidade); ela sente seus olhos se encherem de lágrimas e aceita o gole de malte que lhe estende o companheiro suarento.
--Vamos fazer as pazes?
--Vamos. Mas por favor?
--Sim?...
--Não gruda em mim. Olhe meus cabelos, somos duas corredeiras de suor...
Ele a olha compreensivo.Desliga a televisão que já fala de um novo atentado em Berlim.
--Você acha que São Pedro está com raiva de nós?
--Acho.
Oremus...