Cigarro faz uma fumaça azul, às vezes, quando se olha assim de lado, contra a luz de um refletor, meia-noite num bar qualquer, cambaio, desses que tem garçom triscando prato, tem chapeiro de olho na rua e tem freguês deitado em balcão. Fumaça azul, eu noto, ela faz estranhas flores no ar e depois da terceira guimba, tudo é igual. O gosto é igual, eu digo. Todavia, é impressão ou sinto o estranho e triste cheiro de lágrimas no ar?
Sou eu que sou cambaio? Tem coisa podre na geladeira, irmão? O salgado é de hoje ou já desandou para o amanhã? Será hora de fechar o bar porque me olha de soslaio o dono contando as notas gordurosas e envilecidas ou ainda sorri o tal magriço, esperando que se vá com sábia indolência seu último cliente?
--Foi bom o movimento?
O senhor, dedos amarelados de nicotina e bexigas na pele de uma catapora lá de trás, diz, os dentes meio sumidos na boca de sorriso franzido:
--É. O movimento vai por ali ( e ele aponta as velhas bundas de sempre esperando os velhos otários de sempre nos mesmo postes da avenida batida de chuva fina).
--Não esse movimento, Josemar. O seu.
Ele olha para os seus empregados, que até pararam de trabalhar para ouvir minha voz rouca de pinga e fuligem. Parou de lavar pratos um deles, o outro cessou a varrição. Mais um deixou a cadeira no ar, como que por suspensão mágica ( ele sempre faz isso). O dono, de olhos longínquos agora, fala entre uma tossida seca e outra miragem impossível.
--Meu movimento? O que eu sei de movimento? Tenho de pagar as contas deste lugar. Tudo o que tenho herdei de meu velho que lavava louças como este aí ( e aponta com o queixo o barulhento companheiro) e terminou, às custas de muitas noites, comprando este lugar. Muitos podem pensar que não sei de nada; outros podem pensar que sou um inválido, porque fumo, porque sou magro, porque mal durmo. Outros ainda podem dizer que só defendo o meu, pau no rabo de todos. Esquecem que, graças a mim, todos eles podem, também, ter seu lugar ao sol, apesar de o verem com pouca frequência.
--Hum hum!
--Pois é. O senhor fica aí com essa ranzinzice e bebendo o que quer na hora que quer, até agora. Todos se foram e o senhor me vem perguntar assim de um tal movimento...
--Acho, seu Josemar, que ele quer pegar o senhor de calças curtas.
--Como assim?
--Ele está querendo falar das panelas, do tal camarada que passou aqui vestido de vermelho...
--Ihhh...
--Não tem disso aqui, não, seu moço. Aqui tem igualdade. Todos iguais, contanto que paguem a conta.
--Sem distinção?
Ele me olha assim incrédulo, como se eu dissesse uma heresia. Tudo pode, menos dizer isso no bar de Josemar.
--Aqui, não, seu moço. Na época de meu pai, muito estudante se metia escondido aqui atrás do balcão fugindo da polícia. Muita reunião de partido começou aqui e terminou em bons lençóis. Muito casamento se desfez aqui, muitos casais aqui se conheceram, de todos os tipos e cores, legendas e gêneros. No fundo, meu bar é o lar mais democrático que existe. O bar, pode ser o mesmo na Rússia czarista, em Cuba de Fidel, na Venezuela de Maduro e em cima do bordel. Dá tudo em pizza. É ou não é, pessoal?
A fumaça pode ser azul, amarela ou vermelha como a cor da cauda do diabo; ela muda de cor em uma festa e pode fazer assim as vezes de uma nuvem. A fumaça é o quarto estado da matéria, já diria Josemar, o filósofo do bar dos piolhos; assim começa um dia novo, a vassoura arrasta restos de uma noite sem eira nem beira, os pratos tilintam mais alto, Josemar conta as cédulas como um louco e eu, bem, eu me arranjo sem ninguém, sozinho como um descabelado, dando meus passos na calçada e ouvindo atrás de mim os risos da última mariposa que se foi. Os postes mirram de luz, o céu se veste de púrpura e já se ouvem carros começando a luta diária.
O movimento, que movimento, o momento é este, gente boa.
|