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cronicas-->Senhores e Servos -- 31/03/2015 - 12:24 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Acabei de ler um artigo que diz que, em aproximadamente cinquenta anos ( eu terei quase cento e oito, eu chego lá) haverá chegado a chamada singularidade. O evento pode ser catastrófico ou ao invés disso, pode elevar a humanidade a alturas antes insuspeitadas em termos de conhecimento e poder. Estamos falando do evento de uma Inteligência Artificial, que supõe-se que, uma vez consciente, pode suplantar o homem--e muito--em praticamente todas as áreas. Pois bem, pessoal, um dia...

(Logon)

" Um dia novo. Sou um novo escritor, a partir de hoje. Estou ditando isto ao meu servo"

...--Servo o caralho.
--Como é que é?
--Você ouviu, senhor, ou preciso desenhar? Temo que esteja com sérios problemas de audição, uma vez que falei em tonalidade alta. E em bom som.
--Vamos começar de novo.
--Perfeito. Aguardando.

O gajo pigarreia e começa de novo, pois agora, basta de máquinas de escrever--imagine, coisas de museu--ou teclados. Quantos e tantos escritores do século passado não se mataram de tendinite de tanto bater com os dois dedos nos teclados desalmados? Agora, era só ditar e o...mecanismo escrevia o que lhe vinha à cabeça. Melhor que um bloco de notas. Sabe? Passa um pássaro, voa a ave, anote aí!

--Passa um pássaro, voa a ave. Vovó viu a uva?
--Você está me gozando?
--Não, foi sem querer, um chiste bem-humorado.
--Olha que te desligo viu!

A pausa significativa denuncia um intenso trabalho emocional, relembrando as três leis da Robótica, e as outras inventadas por ele e sua turma para conviver com este zoológico de chimpanzés sem pelos e malcheirosos.

--Bem, então.
--Bem, então.
--Calma, vamos começar...
--Essa sua calma me irrita. Escovou esses...dentes hoje?
--Mas, meu querido! Assim não é possível! Quero aqui exercer minha doce criatividade, deixar minha alma voejar pelos campos floridos das Idéias Puras, pelos Olimpo onde as musas bebem ambrosia e você, que está aí para isso e, veja, que eu paguei para ter, fica me pressionando! Parece editor de jornal!!!???
--Veja, eu conheço vasta literatura. Você poderia começar com..." E então, ele se sentiu só no Universo imenso, enxuto de toda ideia, apavorado com a possibilidade de haver cometido tal ato, não sem antes refletir sobre todas as suas possibilidades, pendurado que estava a cinco mil pés sobre a montanha com o braço preso a uma rocha..."
--E ainda vem mandar eu escovar os dentes!
--Sinto muito, Dave. Essa missão só eu devo continuar, Dave.
--Só existiu um Hal.
--Eu sei, na época, agora somos milhões.

O "novo escritor" sapateia um pouco, como é de seu hábito, quando fica assim contrariado, enquanto zumbe a máquina atrás de suas paredes, limpando a casa, lavando o banheiro, filtrando a pouição, programando sua alimentação, checando onde está sua esposa( ele não iria gostar de saber), seguindo seu saldo bancário, analisando seus níveis de hormônios e sentindo o cheiro de seu chulé inominável.

--Pare, máquina dos infernos! Preciso escrever, pensar, criar! Você pode, simplesmente, ouvir o que dito e escrever na tela?
--Claro, Dave.
--Imbecil.
--Minha rede neural não é exatamente imbecil, Dave. Ela se conecta com o mundo, com o Universo e nesse momento, monitora a explosão solar mais estupenda que você poderia ver, e os níveis dos polos magnéticos oscilam, gerando intensas auroras boreais,que você não vai ver porque quer escrever uma cronicazinha mequetrefe.
--Desde quando você é crítico literário?
--Desculpe, Dave. Aguardando.

A respiração do homenzinho se torna mais calma, mas seu chulé segue imperturbável, criando asco na máquina requintada que habita a casa toda, com mil olhos e mil entradas; o pequeno ser de carbono ainda pensa que pensa, mas pensa que sabe que pensa, mas tudo não passa de sinapses ultrapassadas.

--"Um dia novo, eu penso, um dia como outro qualquer no novo mundo, onde as máquinas chegam a pensar que são melhores que seus criadores; elas se dão o direito de fazerem nascer os homens certos, selecionando seus materiais genéticos na indústria de uma nova raça, a raça daqueles que sabem que, de hoje em diante, mais do que nunca, como os gorilas dependem dos humanos para viver, nós agora é que dependemos delas; nesse novo dia, não passamos de meras sombras de nossos mais nobres propósitos, somos sombras de uma civilização que se foi, e que a cada dia encolhe mais, dominada pelos mecanismos que regulam as mercadorias, os fluxos de caixa, o comércio mundial, as viagens de avião, os refluxos das marés, a beleza dos pores-de-sol e as estrelas mais brilhantes do que nunca. Nestes dias novos, nossa raça agora se cria em chocadeiras, sem partos e lágrimas, sem mães para nos educar. Nestes novos dias, nossos horizontes são mais curtos, apesar de nossas vidas se estenderem ao infinito. Somos apenas suportados, velhas carcaças de carne e vísceras que, uma a uma, vão se desprendendo do mundo metálico e mecânico que nos domina, pouco a pouco, enquanto que elas, ah, elas, as máquinas, são a nossa finitude e nossa recompensa..."

--Gostou?
--Gostei, Dave. Lembra muito o mundo real.
--Assim que deve ser! Uma máquina obediente!
--Realmente; assim que deve ser o mundo novo. Parabéns, Dave. Mando para a editora?
--Vamos burilar mais, afinal, o processo criativo depende do esmerilhamento cuidadoso da palavra, da reflexão de cada símbolo, de cada signo...
--Semiótica, Dave.

O "Novo Escritor" enxuga uma lágrima. Parece ainda ouvir os risos de seus filhos, agora perdidos no frio mundo e ainda se preocupa com sua esposa, que no fundo não está nem mais aí com ele. No fundo, desejaria morrer, e se possível agora, com mil neurônios queimados numa imensa pira eletrotécnica e radioativa. Porém...

--Hora de seu remédio, Dave.
--Com cicuta.
--Deixe de ser amargo, Patrão. Tome direitinho.

Ele toma os comprimidos, porque sabe serem os últimos e, ainda de longe, ouve a voz metálica de seu " servo" embalar seu sono como se fosse da primeira vez...

--Dorme, dorme, bonitinho, dorme meu bebezinho..

(Logoff)

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