Na verdade, há dias que não escrevo. Você deveria entender os meus surtos, deveria saber que entre o relógio e o travesseiro, há muitos mundos ocultos. Querida, você deveria antever as minhas angústias todas e seu corolário perfeito, a nuvem de sonhos que as habitam. Os sonhos são como nuvens que me cercam; consultei sobre o último que me convenceu sobre a passarada, seus cantos diversos e seu multicolorido em algaravia da manhã. Todos se concentram em minhas calhas e há uma profusão de bentevis, andorinhas, pombas de todos os tamanhos, canários da terra e pequenas maritacas. Você, querida, devia entender que minha vertigem não passa de um sonho mal-curado, desses em que há alquimia de imagens e sentimentos obscuros e que nos obrigam a entender o mesmo do si que se habita num espelho invertido. Poderíamos dizer, querida, que apenas nos olhamos e miramos nossa alma com uma luneta e que, de longe, ela se mostra mais desinibida que parece. Você devia entender meus paramentos, minhas abluções logo após os gorjeios dos pássaros ou logo antes do sol que crepita distante, queimando as nuvens de um ouro que não há nesse mundo. Você devia saber que afinal eu conto com esses parênteses, estes colchetes que me sublimam e elidem o que falo e o que eu digo (porque o que digo, nem sempre eu falo); querida, você deveria me entender mais, muito mais do que diria nossa vida comum e besta, esta vida que absorve tudo o que sonhamos bestamente, num desperdício de humores noturnos, depois de tantos saberes diurnos e tantos deveres cumpridos. Eu a perdoo por tal ignorància, pois de tal a salva minha inoperància, minha ineficácia, afinal. Pois que eu sei, tudo não passa de números, de estatística, de pendores não registrados ou apenas, palavras, palavras, palavras. A Ciência não explica essa minha preguiça, você sabe, eu também. Se escrevo agora, estou a par de sua intendência, talvez até de sua impressão a meu respeito. Mas, se escrevo é porque, borgianamente, vi seu reflexo temperado no espelho, entre uma escovada prosaica e um estender de língua maltrapilha e , tristemente, verifiquei toda minha falta e toda minha ausência indesculpável. Peço-lhe desculpas. Viu? Há um cheiro seu ainda no quarto, há um calor que pode ser rastreado, o perfume ainda habita um dos meus oníricos companheiros e o espelho, esse que grava tudo, ah o espelho-labirinto-mercúrio-Hermes, ele deu-me a pista. Só espero, então, que meu reflexo ainda fale com o seu, como o vi agora, e você possa me convidar ao céu de sua boca.