Achei um manuscrito misterioso, deixado num caixote de papelão próximo ao centro da cidade e São Paulo, bem junto à s ruas que conduzem à Cracolàndia.
Estava ali, jogado, escrito em um papel que se assemelhava a um papiro, em letras só a mim inteligíveis, pois que, ao levá-lo perto de um espelho, ví que tinha sido escrito ao contrário, a pensar que fosse um documento que se devesse ler de uma forma respeitosa.Reproduzo parte dele aqui, desde que não o leiam já; esperem um pouco, afinal, assim de chofre não se toma um tiro.
Lá vai:
"Andei pensando sobre os significados e o que rege nossa vida, toda essa vida; achei vacuidade, fátuos fogos. Achei mendicància emocional, gratuidade de expressões. Encontrei a violência, seja a implícita em todas as relações humanas, seja a mascarada nas formas verbais empregadas em sociedade; encontrei o império da ignorància e a cultura do desassossego, tão farta em nossos dias.
Nada pode parar, tudo o que se move é o que progride, dentro desse pensamento que torna nossos dias de uma execrável melancolia existencial. Somos produtos ou subprodutos de uma civilização positivista, arrogante e que tem o dom de se achar a supremacia do infinito desejo, quando não passa de uma lamentável série de equívocos baseados em valores que só se transmitem, Ã toda sorte, para cada vez mais indivíduos que se estigmatizam, se mostram, se expõem em relevos cada vez mais penosos. Nada mais fácil que a exposição prolongada que gera a rapidez com que se consome a chama viva do que se dizia ser a alma, essa substància que se volatilizou, de vez que apenas o corpo parece ser o mecànico produtor e secretor de tudo o quanto há de real e ilusório.
Não passamos de máquinas de sonhos contraditórios, sangue que verte de uma caixa cheia de músculos e nervos e que acaba num saco de excretas e poeira. Segundo estes filósofos, o material se antepõe ao espiritual; segundo eles mesmos, nada mais há que a vã consciência da carne e que, quando esta acaba, tudo em real termina; isto é, em Nada! Nada absoluto, circunvoluções cerebrais que carregam elétricos impulsos gerados pelo nada e pela vacuidade, moléculas enxutas que se desabam umas sobre as outras, num delírio de genes sem destino. Há, é claro, um destino: Chama-se...
Como se chama mesmo? Qual é mesmo o significado de nosso destino? O símbolo dos sonhos traz de volta nossa mais profunda palavra, antes mesmo do grito primal que enche os corredores das maternidades, enlevando a nova mãe que se apressa em amamentar mais um indivíduo que nasce; pobre nascituro, destinado que está Ã fragilidade de suas concepções, a ideologias que permeiam tudo, e mais além, e mais além ainda. É quando os olhos do homem se viram aos céus que ele realmente encontra o que perdeu, e foram fotografias de um instante que já se foi. Dentro dele, há uma infinitude de conceitos e ele os despoja, despreza seus mais íntimos anseios, sacraliza sua vicissitude e eterniza o horror dos holocaustos todos a que se propós em milhares de anos de história.
Haverá o que defender?
Teremos como nos haver com o nosso passado tenebroso e fugir do futuro nebuloso a que nos conduz nosso temível presente?
Não, não faço aqui a apologia do temor universal e muito menos prego a não-existência, discordando que o maior mal do Homem é ter nascido; temo ser classificado de niilista, ou pior, de um falso profeta e de um pregador subversivo e inútil. Falo à s massas que de amorfas nada têm! Aqui emprego a palavra luta, em primeira essência, mas não a luta encarniçada que se pode depreender dos materialistas históricos, e sim da luta do Homem contra sua própria essência dantesca. Todos sabemos de nossos elos e fraquezas; não o nego ( mesmo eu as tenho as minhas).
Faço aqui um apelo a vossas insurreições secretas; faço aqui um apelo aos movimentos mais sutis da natureza humana, os mesmos que ditaram os rumos dos olhos que se fundiram à s estrelas, mesmo que de fato elas já não mais existam.
Essências de todo o mundo, uní-vos!"
A partir daqui, havia um chamuscado, sugerindo que tal documento havia sido barbaramente queimado, sem piedade nem apelação.
Gostaria de saber de vocês se conhecem autor de tal mensagem.