Acordei hoje, mas juro que num dia cinzento e frio como este, preferia digamos ter acordado amanhã. Já no iniciar do dia, bem quando aquela névoa se espraia no horizonte, confundindo o cinza com o mais cinza ainda de nossa megalópole amada e detestável, não é, Bial? Aí já começou a baixaria. Uma certa quina inútil, que sempre se bandeia para o lado mais próximo de meu dedo mínimo, essa danada resolveu encontrar-se comigo na hora mais ingrata. São cinco e meia, Deus me livre. Sei que a via Láctea pulsou em meus olhos e de minha boca, saíram palavras que nada sacras pareceram; de tal maneira que quando adentrei ao box, ainda respingava aquela água gelada que...arrepia...as pudendas partes...fazendo-nos saltitar como cabritos próximos à imolação.
Fazer o quê?
Abre a torneira, irmão. Abre!
E lá vem o jorro que enfim vai nos redimir da noite cercada de sonhos e humores, jorros e benesses de um cobertor felpudo.
A água cai como Iguaçu, sem sinais de...calor! Aonde foi a água quente? Aonde?
Faltará a luz?
Não, porque, com meus olhos sem óculos, contemplo o borrão dourado que a lâmpada produz sobre minha cabeça. Então...
--Queimou o chuveiro!
Os vizinhos devem ter pensado que havia um porco sendo preparado dentro do apartamento, tais eram meus gritos com a gelada cachoeira que fendia meus poros exangues.
Então, amortecido pelo Polo Norte, enxugo-me praguejando todas as resistências imundas infames que eu conheço. Haja coronárias.
Definitivamente, o dia nasceu mas meu humor, natimorto, agora navega entre a raiva e a sensação quase homicida em relação à quina salafrária. Meu dedo, percebo, aparenta-se a um miolo de pão dolorido e inútil. Será que ouvi um "crack"? Acerto-me com você depois, quina fantasmagórica. Olho para o chuveiro, Niágara congelado. Penso na vida que levamos antes. Nunca poderia ter sido um Homem de Neandhertal.
Maldito frio. Café engolido depressa, manteiga que gruda e não derrete, jornal a meia-boca. Economia a meio pau, juros escorchantes e o dedinho, olhem, pulsando como um coração. Vou amputar essa quina sem delongas, será de noite, chegarei com um machado.
--Quininha! Cheguei!!!
Iluminarei o quarto, então e ela nunca mais me tentará amputar o dedinho.
Mancando, desço o elevador. Cruzo com a vizinha, simpática, lábios carnudos e de roupa de academia. Tento disfarçar a dor que deveras sinto, mas não sou bom fingidor.
--Bom dia!
--Bom dia!
--Você está bem?
--Acho que sim.
--É, porque seu sapato está solto.
Olho feminino que tudo vê, na verdade se há algo semelhante à onisciência, é delas a força. Que triângulo, que nada; é delas o olho que enxerga tudo. Elas são as informantes de Deus e de todas as coisas. Como ela nota, assim numa mirada, que algo em meu pé não vai bem??
--Ah! Puxa, que distração.
--Deve estar doendo!
--...É. Está.
--Por falar nisso, ouviu uns uivos agora há pouco?
--Ouvi!
--Vou reclamar desse casal de novinhos. Poxa, amordaça a novilha!
--Tem razão!!
--Bom trabalho!!
E lá vai a musa, digo, a moça, rumo à sua academia e eu, miserável, tendo uivado antes, não o faço agora por puro respeito, que ela é casada e seus filhos dormem. Ou fingem que dormem. E meu pé querendo sair da boca do sapato. O pulsar assemelha-se a um sino, que é o sino de meu pulso. Mancando, entro no carro. Tudo bem até agora? Tudo. Lá vou eu, digo, vamos eu e meu carro. Noto a ligeireza do vapor de combustível, vamos, vamos, chegue ao posto, seu salafrário, vamos, não falhe assim...Não falhe!!!
Não preciso dizer que, manco, com um sapato solto, empurrei o carro até o posto que por sorte fica a menos de um quilômetro. O frentista me ajuda e brecamos o carro a tempo antes de atropelar uma senhorinha que vem impávida da feira, cheia de repolhos e couve. Imagino a atmosfera em torno dela ou dentro de sua casa. E ela mostra o dedo que definitivamente não é o mínimo!
Enche-se meu tanque, quero dizer, o do carro. Pago no cartão, vamos, senha um...senha dois...Passou, mas que estranho, que estranho. Vou para o trabalho e na entrada, a secretária com seu olho feminino e infalível me olha de cima a baixo:
--Frio, hoje?
--Não, um calor danado!
--Sua braguilha está aberta; e esse sapato?
Eu falo que o olho humano tem suas vidências e o olho feminino tem suas clarividências!!! Corrijo um problema, com cuidado e o outro eu sinto como se fosse um sino, de novo( havia me esquecido da dor)
Agora, sento-me confortável e ligo minha bancada de trabalho
Tela azul da morte. É hoje. TELA AZUL DA MORTE. E agora?
A simpática vizinha, que eu paquero há meses, oferece a sua para meu trabalho; o mocinho da TI diz, como se eu fosse culpado:
--Tá todo bugado.
Nisso, toca meu celular.
--Alô. Quem fala?
--Senhor dedinhos (omito meu nome de vergonha)
--Senhor Dedinhos, detectamos uma operação ilegal em seu cartão. O senhor foi viajar recentemente?Esteve em um hotel nas Bahamas há menos de doze horas?
--Não!
--Seu cartão foi bloqueado; receberá um novo em oito dias!
--OK.
O senhor Dedinhos, nessa altura, quer voltar para a cama ou para dentro da barriga da mamãe.
--Você está pálido!
--Também, veja...
E desfio o rosário para minha charmosa colega, que ri às pampas. Ela tem a solução dos meus problemas.
--Sabe, sempre fui ligada na área de saúde.
--Eu tenho certeza disso (que saúde, Deus meu)
--Então. Acabaram de descobrir um vírus novo.
--Ah, é?
--Foi trazido na Copa do Mundo para o Brasil por torcedores africanos. É o Zikavirus!!!!
Olhei incrédulo para a mocinha, com seus olhos de jabuticaba e o sorriso certeiro de quem pegou o otário aqui de calças curtas e braguilha aberta de novo.
--Não!
--Sim!!! E ele é transmitido pelo mesmo mosquito da dengue.
--Sério?
Descobri!! Não tenham dúvidas. Hoje, ao chegar em casa e preparar a machadinha que vai desbalançar meu berço vou usar meu inseticida para matar o tal mosquito indecente. Ele deve estar lá, seus dentes e sua tromba rindo com todas as forças de mim. Nunca mais pego Zika de dia!!!
Ele me paga.
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