Todavia, e por isso mesmo, chove lá fora. A água bendita escorre nas vidraças com seu visgo de quem se agarra, para ser vista sem ser visível, para ser palpável apesar de dúctil; a água se mostra como avis rara e gorgoleja nas calhas, adormece os insistentes sonhadores da manhã que já vai tarde, aninha os pombos que se ousam colocar a cabeça para fora, percebem a pouca utilidade e voltam ao namoro. Tudo o que a água faz é marulhar no dia, murmurejando nas catadupas, escorrendo ao solo seco que a engole em assovios de alegria. O chão a recebe como a maior das bênçãos. A terra crestada que chia engolindo em golfadas o manjar que vem cada vez mais raro dos céus cinzentos de fuligem, fumaça e pó seco e metálico. O silêncio que precede a chuva, a calmaria da escuridão de dia e depois as rítmicas pancadas de vento nas venezianas, o cobertor que se torna mais quente, as gavinhas da hera, da falsa vinha, grudadas aos muros transformados em latentes quedas d'água. O ser, mais que permanecer, ainda mais profundo que o estar. Onírica paisagem, evaporações e névoas, as águas na cabeça de meu pai e meu abraço àquele que se foi; chuva, chuva de idéias, pedriscos e ventos lúcidos, paragens diáfanas, mistérios e circunvoluções.
Santificada seja vossa umidade.
Venha a nós em estado bruto.
Amém.
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