A fumaça azul tinha um gosto acre, irritante. Subia do cinzeiro improvisado, saía como um cheiro danado pela porta do compartimento em que se encontravam os quatro meliantes. Pendurado à parede, um calendário com mulheres nuas, de antes do tempo conhecido por eles. Os sorrisos delas iluminavam o recinto decaído, invertido em sua essência. O fundo era uma cúpula de uma Igreja demolida onde o som cavo retinia. Havia quatro homens lá, se é que homens seriam. Ou melhor, se é que o homem ainda existiria, tal era a situação que existia no entorno, onde se acumulavam detritos, árvores arrancadas, raízes expostas e peixes podres ao lado de restos de comida e montes de latarias de carros abandonados já corroídos pela ferrugem.
--Ferrugem!
--Oi.
--Trouxe o material?
--Está aqui.
O ruivo sarapintado é um homem de poucas falas, monocórdico, seco e terrível com os inimigos. Tem um olho mau, um olhar que fulmina, tem boa mira porque treinou no Exército em seus bons tempos de juventude. De todos ali, talvez seja o mais selvagem e é por tal virtude que recebe as piores missões do grupo. Ele beberica algo de uma garrafinha que tem sempre no bolso, algo lustroso e amarelo, de sabor encorpado e meio amargo.
--Alfinete?
--...
--Parede!
--Fala, chefe!
--Alfinete, já te falei que não gosto dessa tua moda de não responder quando eu te chamo?
--Já. É que sou meio surdo, chefe.
Alfinete tem uma cabecinha pequena. Nasceu da epidemia há uns vinte anos atrás. Tem vinte, cabeça de dez e coração de oitenta. Ele é violento, meio descontrolado, mas obedece a seu chefe cegamente, porque tentou de tudo e nunca se colocou na sociedade, como ele mesmo comenta. Apesar de seu evidente retardo, faz muita coisa que outros não fariam. Sua especialidade é escalpelar os incautos e ao lado de Ferrugem, é temido por sua habilidade com a pequena faca. Ninguém dorme ao lado dele por medo que, num ataque de fúria, ele lhe retire o resto de cabelos que um dia lhe pertenceu, com a velocidade enorme dos açougueiros que evisceram um novilho num churrasco. Alfinete tem raiva de quem o chama de Alfinete em certo tom. Lembra-se de sua infància na casa da mãe que o desprezava após seu nascimento e que nunca se recuperou de ter em sua casa um certo tipo de aberração. Portanto, cuidado ao cruzar com ele. Não olhe para ele com olhos de troça: Quando você menos esperar, está careca como as crianças que nasceram após a terrível enchente de lama das quatro barragens que se romperam e que deixaram muitas mães submersas no lixo radioativo na orla do Leblon. De noite, a praia brilhava em azul e não eram algas fosforescentes e sim, eflúvios de dejetos malcheirosos que boiavam na nova Baía de Minamata. As crianças nasciam carecas e hoje, cabelos valem muito no mercado negro, de preferência loiros, porque ninguém quer cabelos duros para transplantar a não ser alguns puristas que defendem a igualdade racial. Todo mundo que tinha os filhos carequinhas preferia ter neles os cachos loiros de uma princesa qualquer, coitada, debulhada de seu couro cabeludo sem ter chance algum de defesa. Davam-lhe um sossega-leão e zás, acordava sem o escalpo. Quanto mais frescos os escalpos, melhores eram as chances de pegar no transplante. Antes existiam clínicas de aborto clandestinas, hoje existem as clínicas de transplante de escalpo clandestino. Natimortos se rejeitam, escalpos são bons para as elites que pagam a preço de ouro um cabelo bem formado. Alfinete tinha olho bom; ele dava a dica para o Beleza, que era o terceiro elemento do grupo: Um belo rapaz de olhos azuis, temperamento sedutor e belos dentes, que usava de seus dotes sensuais para arregimentar vítimas de ambos os sexos para a devida descabelada cirúrgica cometida por Alfinete. Beleza, convencido como ele só, fazia valer o seu salário em ouro. Gozava de privilégios, vez em quando o Chefe lhe dava uns mimos.
--Ah essa vida é bela.
--Fale por você-respondia ferrugem e seu olho mau.
--Qualquer hora destas você perde esta pica, vai falar fininho que nem aquele lutador que quebrou a perna, nos bons tempos. Acaba tua fonte de renda.
--Vou te avisar, não mexe comigo. Boto o Alfinete pra te vigiar. Outra coisa, a minha fonte é a tua fonte; não fosse eu com este bico doce, você, eu, Alfinete e o Chefe não comeríamos, nem teríamos o que vender aos Superiores.
O Chefe, o quarto elemento, para não deixar cair o moral do grupo, dava então um berro. Rugia feito leão, mijando no poste para delimitar quem era o principal elemento ali. Questão de território. Assim como estava não dá: Ou ele mostrava os dentes, ou tudo se acabava em caos.
--Porra! Quem manda aqui, porra? Mijou fora do meu território, a porta do barraco é serventia da casa. Só que, cruzou a porta, dorme para sempre, calminho calminho. OK?
A cabecinha de Alfinete balançava primeiro, depois a de ferrugem a contragosto e por último, Beleza.
--Mostra a mercadoria aí!
Abria-se os sacos; ressaltava aos olhos uma linda cabeleira loira, ainda com diamantes pendurados.
--Essa foi de uma noivinha. Quedou-se a correr, não queria casar; peguei na rua, botei pra dormir. Não casa mais, sem cabelo.
--Era bonita?
--Uma bonequinha. Vai ter de usar peruca.
--Hahaha! Suprema ironia, de repente tem de usar os cabelos que um dia foram seus!
--Você é cruel, Ferrugem! Deviam é rapar os pelos do teu...
--Mostra mais a mercadoria! Porra!
Era um desfile de cabeleiras negras, quase azuis de tão escuras, loiras de monte, cacheadas, lisas. Até que toparam com uma pequena cabeleira dourada semelhante a cabelos de anjo.
Todos se entreolharam. Todos olharam para o Ferrugem que palitava os dentes depois de comer um frango das vizinhanças do charco fétido.
--Você teve a coragem...!
--Filho-da-puta
--Vou degolar você!
Ferrugem,assustado, tentou se explicar.
--Era fácil! A menina estava balançando em um brinquedo lá na Dutra, era pegar ou lergar!
--Quantas vezes tenho de dizer que aqui não tem lugar para crueldade?
Alfinete afinava seu instrumento de trabalho olhando de soslaio para Ferrugem. O Chefe, nitidamente perturbado, encarava Ferrugem nos olhos, que abaixava o olhar encafifado; nunca vira o chefe assim.
--Te prometo que a próxima vez, dou um jeito de te lascar no ato. Nunca mais, está ouvindo? Nunca mais!
--Prometo.
--...Então. Bela mercadoria. Vamos levar aos Superiores. Deve dar uma boa grana.
Alfinete fazia sinais a Ferrugem, que mostrava os dentes e desafiava o microcéfalo.
--Vá lá, vamos passar para o lado da Colónia, que o cheiro aqui está ruim.
--Peixe morto demais, chefe. Nem os Mutantes aguentam mais isso.
--Falando nisso, ouviram falar do Boto Cor de Sangue que nasceu na Foz do Rio Aspargo?
--Boto cor de sangue?
--É, dessa cor mesmo. Tinha duas cabeças e nadadeiras feito asas. Diz que tinha gosto de frango.
--Comeram a aberração?
--...É chefe. Comeram.
--Putaqueopariu, é o final dos tempos.
--Só faltam os sinais no Céu.
O Chefe olhou o Alfinete de soslaio, metido que era ele em leituras desafiadoras e a dizer frases de livros que descolava no lixão. Sempre citava Goethe, Nietzsche, Thomas Mann, Dostoievsky, Tolstoi, Lênin, Guevara...
--Que sinais do céu, Alfinete?
--" Verás então grandes sinais no Céu, Ã época da descida do Senhor".
--Apóscalipso?
--Apocalipse, animal.
--Ah, é. Tudo a mesma merda. Nunca me meti com isto não. Mas veja, lama por todo lado, quarenta graus à sombra no Inverno, chuva ácida queimando as árvores, incêndios no Pantanal, Amazonas secando, a mulherada desesperada com os filhos, praga nas lavouras, inundações no Sertão e seca no Equador, quadrilhas roubando cabelos, escolas sendo fechadas, bárbaros queimando cidades, livros se amontoando em lixões... Apóscalypso.
Tudo era melhor quando havia uma banda assim. Agora eles tinham de negociar com os Superiores.