Acho que sou capaz de contar histórias. Dizem que se inventa de tudo um pouco mas chego à saudável conclusão de que a realidade, este mito criado pelo ego que cria o mundo para que possa trilhar os palmos de seus ritos, a realidade supera a ficção. A realidade supera em muitos pontos a ficção. Vocês sabem, eu sou médico. Recentemente atendi uma senhora simpática, cabelos grisalhos de um raro brilho. Entrou no consultório com passo serelepe, magra e bem feita. Passou para mim uma energia boa! O médico, ora vejam, tem que receber também boas energias e muitas vezes tem de lidar com maus eflúvios; sinto no andar de um camarada quando ele carrega uma pesada cruz ou tem alguma culpa medonha nas costas. Percebo no olhar de quem me fita qual a penúria que lhe vai no íntimo ou qual pecado carrega secretamente. Costumo dizer que depois de um certo tempo, nossos olhos ficam enxutos e sabemos discernir o pranto verdadeiro do falso. Daí que entra serelepe esta madura senhora de seus sessenta e poucos anos.
--Em que posso lhe ajudar?
--Eu estou bem. Vim apenas fazer um "check up". Sabe como é, tenho meus probleminhas. Colesterol, pressão alta. Daí que todo ano venho ver como andam as coisas.
--Sente algo?
--Absolutamente.
--Fuma?
--Nem pensar!
--Faz atividade física regularmente?
--Academia dia sim, dia não.
--Muito bem! E em casa?
--Ah, em casa tem uns problemas.
--Posso saber quais?
Ela me olha de cima a baixo, com a cortesia que têm as almas nobres e com a certeza de que há alguém que se importa com ela. Prometi a mim mesmo que publicaria histórias de minha convivência com estas pessoas; aqui cumpro o meu papel. Não costumo descumprir palavra posta e nem deixar de pagar aposta.
--Bem, lá em casa, você sabe, desde que perdi meu marido, eu que toco a vida. Cuido de tudo.
--Vive só?
--Que nada! Cuido de uma filha de 44 anos que aos vinte e três teve um surto esquizofrênico. Foi assim: Desde peque nina já tinha umas alterações e os psicólogos já chamavam a atenção. Muito bons, elas me alertavam para estimulá-la sempre; ela tinha algumas dificuldades, sempre uma criança só, poucos amigos. Formou-se, foi trabalhar com administração e começou a ter problemas daí em diante. Parou de comer, ficou um fiapinho. Não comia porque não tinha fome. Toca a tratar de sua inapetência. Daí, parou de tomar banho porque dizia que a água estava cheia de vermes e venenos. Não tomava banho, já imaginou? Tinha de brigar com ela. Finalmente começaram as vozes, as vozes que a perseguiam a toda a parte; não dormia, dava gritos terríveis de noite porque os Outros a queriam levar. Teve jeito não, tivemos de internar. Lá foi um pedaço de mim longe e eu aflita acompanhando a menina. Nesse intervalo, morreu meu marido de ataque cardíaco. Como um passarinho, de tristeza. A mais nova e eu ficamos cuidando da casa e esperando a volta da mais velha. Nisso, a mais nova se engraçou com um moço bonito...
Ela tomou fólego e lambeu os beiços, passando as mãos pelos belos cabelos brancos, a fronte alta, os olhos nobres de um cinza claro e brilhante.
--O moço bonito viria a ser meu genro e, muito especial que era, casou com minha filha mais nova. Ajudava em casa...Dava muita força para nós. Era um anjo. Quando minha filha mais velha saiu, estava melhor, dava até para fazer coisinhas em casa. Demos-lhe um quartinho dos fundos, onde ela está até hoje; ela pinta uns quadros malucos e belos. Diz que eles vêm dos Outros que lhe falam exatamente como compor as cores e os traços. Os Outros agora lhe deixaram em paz, desde que ela esteja sempre pintando. Meu genro então comprava telas e ela habitou o quarto dela com telas, panos coloridos e luzes que sobem até o forro, tem de ver! Bandeirolas que fazem o quarto parecer um eterno São João, quadros que muita gente compra por bom preço. Ela, a gente costuma dizer, ela se salvou pela arte. Mas tudo que é bom dura pouco. Meu genro, o marido de minha filha mais nova, já tinha um filho de um casamento anterior. Daí que nasceu uma menina; esta foi espevitada desde o início! Esse meu genro, que Deus o tenha...
--Como assim?
--...Viajava muito. Vivia passando dias e dias na estrada, vendendo componentes elétricos; sua empresa era firme no mercado. Estava voltando para cá, quase em São Paulo quando pegou um caminhão. Morreu na hora. Deixou a filha pequenina e o filho mais velho para a gente criar. Claro que acolhi minha filha e sua família. Ela quase morreu de tristeza: Eram unha e carne. Mais apaixonados que Romeu e Julieta; só não estiolou porque eu dava comida em sua boca. Um dia ela acordou, levantou e foi à luta. Somos parceiras em casa; o menino mais velho trabalha e hoje é ele que compra as telas para a tia; ela já expós na cidade, minha filha mais nova arranjou trabalho...Mas sempre tem um porém...
Ela olhou de soslaio para mim, sua voz era cristalina, vindo de uma alma tão experimentada e calejada. Simples, tinha os timbres fortes. Sabia se impor silêncios e sabia quando retomar o fio da meada.
--...Pois é, a minha neta hoje tem seus quatorze anos, bonita de ver, um pitéu. Quer saber de estudar? Nada seu moço. Ela faz que nem personagem de novela ou conto: Espera um príncipe que lhe caia no colo e que a leve de nossa casa. Beleza tem, mas, é duro de admitir, burrinha de dar dó. Não se interessa por nada, mal lê revistinha... Difícil.
Dou um tempo a ela, que parece ter esgotado um pouco o seu assunto.
--Falemos de você; sente alguma coisa?
--Nada! Vim só para fazer uns exames.
Depois de examinar essa mãe admirável, prescrevi-lhe os medicamentos habituais.
--Muito obrigado!
--Não há de quê!
--Vou lhe trazer uma tela de minha filha em breve. Fica de presente!
--Traga! Vou pendurar bem ali--e aponto ao nú da parede caiada, ao lado do armário de vidro onde se amontoam pastas, papéis avulsos, receituários e prontuários organizados.
Vai dizer que a ficção supera?