Vou contar uma história, mais uma dentre tantas que recebo. Essa me foi passada por uma moça das mais bonitas: Graças a Deus, ela carrega consigo ainda a luz da esperança nos olhos e vê os outros com a vista que eu gosto de ter: Nada nos separa dos outros que nos cercam, a não ser os muros do preconceito e da indiferença; transpô-los é nossa missão, penso eu.
Disse ela que estava andando por uma rua de São Paulo, após fazer uma refeição frugal num pequeno restaurante. Não comera muito pois estava indisposta. O que viu, à sua frente, antes de ver quem o carregava, foi um carro destes onde se amontoam relíquias de casas sem serem antiguidades, papéis descartados, revistas velhas e diversos tipos de canos. O carro tinha uma placa onde se via algo como “ Deus é Maior” ou algo do gênero, ela não se lembra após o que se passou. Pendiam do carro diversas panelas, algumas areadas, outras de um cobre barato. Elas retiniam de longe chamando a atenção dos transeuntes para o cortejo que passava. Havia um cachorro amarrado na composição toda, magro e esquálido, ossos aparentes, mas vista apurada; o pequeno cão farejava à distância o perigo e a boa comida que se escondia em latas de lixo ou saídas de restaurantes.
Caminhando mais depressa ela quis ver quem movia a parafernália e deu de encontro com o dono da carroça, o maquinista da miserável trupe: Um senhor de seus quarenta anos, negro, cabelos encarapinhados e de boné surrado, olhos denotando o dia quente, pele dura pela exposição ao sol contínua, mãos agarradas ao leme de sua embarcação, que eram duas traves de madeira com as quais ele arrastava toda a carga sob a inclemência do verão paulistano. Todo ele transpirava cansaço. Ela, bonita que é, não tinha como não chamar a atenção dele. Ele a olhou e viu que ali talvez passasse um anjo. Com a voz combalida, na esperança de ter algum contato, quem sabe, arriscou:
--Moça, a senhora podia me arranjar um trocado?
Ela pensou, este trocado seria mais digno transformado em alimento; sabe-se lá se o trocado vai para algum vício secreto ou, pior, vai para um litro de bebida que só vai lhe prejudicar?
--Trocado não tenho não, mas se o senhor aceitar, lhe pago uma refeição.
O homem parou o carro, esticou o braço e enxugou a testa gotejada de cristais de suor e sal. Olhou a moça de cima a baixo. Como assim? Uma refeição?
--Uma refeição, moça? É tudo o que eu preciso; venho arrastando essa geringonça desde lá debaixo (e aponta a Alameda cheia de árvores e prédios escondidos pelas copas); a roda precisa de uma graxa, está difícil de andar nela. Fora o Fiel ali que só late para todo mundo! ...
--Fiel? Ele lhe protege?
--Não me larga não, moça. Esse bichinho já espantou traficante que teria trocado meu carro por pedra de crack. Ele me dá muita segurança!
--Está magrinho!
--Como o que sobra.
--E você, vive de seu carrinho?
--...Pois é! Trabalho, carrego para ferro-velho, troco papel por dinheiro e garrafas e latas eu vendo para sobreviver. Está complicado, os camaradas estão economizando até em comprar lixo. Todo mundo na crise danada, né?
--Pois é, meu amigo...
E lá foram os dois, subindo a rua arborizada, ele esfregando a camisa, visivelmente exausto, o cachorro desconfiado daquela dona, será que ela não vai levar nossa casa, as panelas batendo no meio-fio e o barulho da roda mal-ajambrada enchendo o ar de queixumes, feito carro de boi.
Uma coisa que ela notou enquanto conversava com ele eram os olhares de pasmo e horror dos outros passantes: Como se o que ela fizesse, conversando com uma pessoa assim, fosse coisa de outro mundo. Ela se sentiu perseguida por olhares incrédulos e até desaprovadores. Decerto pensavam que aquilo era um escândalo: Onde já se viu? Essa mistura social! Porcaria, que nojo! Isso é indigno dela!
Pior foi quando pararam frente a um restaurante e ela entrou e pediu para ele um prato. Escolheram ali dentro mesmo o que ele queria: O rosto dele, iluminado pelo prato, talvez tenha sido o que mais próximo ela tenha visto de gratidão naquele ser humano judiado pela vida e pelo tempo célere...Ele comeu com avidez, tomou um belo suco que ela lhe ofereceu e, sob olhares atônitos dos fregueses do restaurante, voltaram à marcha na rua, ele já mais refeito, ela com a estranha sensação de dever cumprido.
Caminharam mais uns oito metros e ele parou e a olhou com olhos gratos!
--Moça, posso lhe dizer uma coisa?
--Claro!
--Hoje, eu me sinto mais eu! Além de muito bonita, a senhora me trouxe a luz!
--Por quê?
--Porque me sinto invisível. A senhora não me desprezou; não me jogou dinheiro como se eu fosse nada mais que um cão. Não me olhou e fingiu que eu fosse um morto. Não deixou que eu ficasse falando sozinho! Obrigado! Hoje, vou contar aos meus que a senhora existe e eu, graças a Deus, existo de novo.
Ela segurou a lágrima, manteiga derretida tal como como sua mãe é, e deu-lhe a mão que ele beijou à moda antiga. Lá se foi o carro gemendo, lá se foi a moça bonita. Ela o procura nas esquinas das ruas onde passa, ele ainda não veio de novo. Quando ouvir de novo o barulho, o rangido, sabe que alguém estará lá, talvez mais cheio de orgulho, mais pleno de vida. O amor torna as pessoas visíveis.Talvez ele venha subindo de novo a rua, seu cachorro atento farejando as lixeiras e seu grito, agora mais forte, peça aos moradores das casas e prédios:
--Garrafa! Ferro-velho! Papel usaaaaado! Moça bonita paga metaaaade!!!! |