As portas de metal ocultam o lado de fora da paisagem inóspita e fria, de um branco insuportável de se olhar. Lá o vento faz redemoinhos, galhos se curvam e gemem sob a tempestade de neve. O frio penetra nas mínimas frestas, poderoso, enregelante, incontestável. É o único elemento que jaz nestas paragens longínquas: A permanência da Morte Branca. Nada se move lá fora. Nem um pássaro ousa colocar suas asas sob a chance de em segundos se tornar uma aberração congelada. Não há lobos, não há água corrente, só um leito com uma lente transparente sob a qual se veem as pedras de um rio que um dia, há milhões de anos, foi correnteza. Culpa dos glaciares, da mudança do eixo da Terra, dos ventos boreais.
Dentro das portas, há a Porta que conduz ao frio abismo. Olhos eletrônicos vigiam cada movimento estranho, cada ser sendo monitorado por um sistema que se reporta ao Sistema, que por sua vez tem olhos que vigiam por dentro o próprio intestino oculto das vísceras do Hades silencioso. Tudo se faz ali, mas nada é visto que não possa ser visto, nada do que se faz ali não existe sem que se saiba que existe um limite a ser quebrado. Os limites jazem ao chão, cada qual deles sendo violado progressivamente ali: Ninguém nunca saberá do que pode não-existir e do que pode ser real sob a espessa camada de neve e sono. A neve e o sono ininterrupto da natureza, que ostenta as montanhas absurdas de milhões de toneladas de gelo puro, compactado à exaustão, sobre montes de cristais de água congelada, ainda mais sobre outros metros de centenas de rochas de basalto.... Nada pode sobreviver ao silêncio infame. Nada.... Ou pode?
Sentado sobre uma cadeira de encosto confortável, há um homem de feições duras e rugosas. Seus olhos perscrutam monitores, que visualizam milhares de telas lentamente, telas que passam incansáveis sob o olhar do homem duro e feio. Um cigarro tinge de fumaça azul o aposento, onde há uma névoa de seu vício incansável. Há dois copos e uma garrafa de um vinho que cintila à luz baça dos monitores. Há mais alguém com o Homem Duro. Há outro, outro homem de feições enrijecidas pelo silêncio dos mortos. Ele jaz ali, sentado, com uma bala na testa. O outro, impávido, manda retirarem o corpo indesejado. Ainda há vinho nos cálices, a bala brutal interrompeu uma negociação que não poderia terminar de outra forma. O Homem Cruel sabe que sua vez chegará, uma vez que ele fez a escolha plausível. No entanto, em que pese que sua escolha fará recair sobre o que resta de dignidade do ser humano mais atrozes ameaças, ele está tranquilo, com seu olhar frio e experimentado. É como se não houvesse ninguém ali. Só um corpo com uma bala na cabeça.
Alguém entra e, de maneira marcial e cerimonial, retira o corpo sem o quepe, a cabeça com um furo certeiro. Olhos ainda abertos, o Cruel vê o que sobrou daquele brilhante oficial: Um cadáver.
--Para onde o mando?
--Recomendações à família dele. Morreu em missão heroica. Faça que eles sejam avisados de maneira suave. Se falarem algo, sumam com eles.
--Para onde o mando?
--Forno 1.
Forno 1. Há os que ouvem isto e pensam nas tenebrosas recordações que povos inteiros têm de holocaustos semelhantes. Famílias inteiras dizimadas, nações destroçadas. O cruel não sabe de nada, só toma as decisões. Ele tem de tomar, há algo em jogo e este algo pode ser o futuro, o futuro da Raça que Resta. A Raça que Resta se esconde nos ermos, se cobre de mantos, novamente acende fogos eternos e piras de madeira com medo do que lhes trouxe a desgraça. Finalmente todas as pessoas se ocultam do mal que grassa e as grandes cidades se apagam, uma a uma. O Cruel sabe disto e baseado nas expectativas que pairam sobre seus ombros, quer relatórios detalhados, dia a dia, mês a mês. Ano a ano, ele produz gigantescas planilhas, que submete ao sistema, que as submete ao Sistema e que rola como uma inscrição apocalíptica, um documento mefistofélico. Os monitores zumbem, o abismo se cala e as cenas se repetem, ad nauseam. Mulheres sob burkas, homens sendo recrutados à força, fogueiras de restos de florestas, barbárie sem retorno.
Nas cidades, sabe-se que algumas ervas podem ser usadas para repelir o mal que vem em ondas. Os rios coalhados de detritos servem de criadouros de mosquitos cada vez maiores e mais diferenciados. Nascem milhões de bebês deformados, cujo choro enche de horror seus assustados pais: Eles cobram o que nunca houve, cuidado, controle, compaixão. Eles olham assustados aos olhos que nunca verão a luz do dia: Olhos cegos de uma civilização que cada vez mais vê declinarem os nascituros doentes e crescerem as taxas de mortalidade entre os que sobrevivem. Olhos assustados veem que entre os que sobram, vinga o sentimento de desesperança, de medo de um futuro inominável. Muitos carregam o Livro, ou o outro Livro; muitos se batem porque num dos Livros, escreve-se que no outro Livro está a verdadeira palavra. Muitos morrem em vão em meio ao desespero e ao niilismo. Correm rumores de que as pestes e as hemorragias crescem entre aqueles que, mesmo se protegendo, não estão imunes ao tormento das doenças que saíram das caixas de Pandora.
Aí que entra nosso amigo de olhos frios: Ele vê e sabe que, ali, naquele deserto vasto e gelado, nunca haverá a propagação daquilo que se vê no quente mundo de ontem. Lá, perto das montanhas nevoentas e ventosas, lá, onde permanece a casca de gelo e cinismo, a Raça que resta dita as regras. O Cruel sabe que seu dia chegará porque enquanto hoje faz o que lhe ditam, amanhã deixará de agradar, como o outro e mais o outro e o que antecedeu outros.... Tudo é uma questão de tempo. Ele vela pela Porta. Ele tem de velar porque ali, no meio das montanhas de gelo, mora o coração de uma civilização na encruzilhada. Muitos sabem dos Experimentos. Muitos sabem que muitos ali são raptados e exsanguinados para que seus anticorpos sejam extraídos. Ele, o Cruel, sabe disso e de mais coisas que não ouso dizer aqui, para que os que leem não afastem mais os seus olhos da realidade que há sob estas palavras; enfim, esta é a lei da sobrevivência.
--Chegou mais um lote, senhor.
--De onde eles vieram?
--Calcutá.
--Ótimo; a fé deles é comovente. Eles sabem?
--A maioria sabe.
O Cruel examina os esquálidos Dhalits chegando em multidão, cada qual com a cabeça baixa, orando aos senhores do tempo e do espaço. De certa forma o Cruel é um Deus de mil olhos. Ele é o objeto do culto. Ele se torna parte da esperança, ele se mancomuna com o Abismo em nome do futuro. Sobre seus ombros repousam muitas vidas, a renegação da humanidade e a lógica do extermínio. Não, eu não posso acreditar na frieza do Cruel ao ver as montanhas de seres humanos que chegam e que nunca mais voltarão às suas casas.
--Antônio, serei eu um Deus?
O oficial, trêmulo, sabe que seu chefe está perturbado. No entanto, com sua tibieza, ele apenas cumpre ordens que vêm de cima, de maiores poderes do que o seu próprio comandante; melhor concordar para ter destino melhor que o seu ex-camarada...
--Sim, senhor, pode ser que seja um Deus. Só um Deus pode ter assim o poder que o senhor tem; Só um Deus...
--Basta!
Alarmado, o oficial sai, fecha-se a porta e ele aliviado, sabe que tem de telefonar para sua família.
Pode ser seu último telefonema. |