O sol que bate na pele tão carinhoso me faz delirar na paisagem. Aqui em cima é tudo mais fácil. Esqueço deste mundo cruel, onde todas as explicações são minuciosas, onde devemos cada passo e cada olhar. Sinto a pedra fria em minhas costas e esqueço de todos os males que tenho medo: a fome, o frio, a solidão. As árvores, tão mães, acariciam o vento maroto que brinca de assobiar e levar tudo a sua volta. Me nego a abrir os olhos e enxergar de longe a névoa poluída que deita maliciosa sobre a cidade multicor. Cidade que cresceu desgovernada, sem deixar um espaço para a poesia, um recanto para o bem querer. Cidade fria como a pedra a qual me entrego, mas impiedosa como o carrasco que nega ao condenado seu último desejo.
Engraçado como não nos damos conta do que deixamos se esvair por entre nossos dedos. Antes, até mesmo de se saber o significado dessa palavra, podíamos respirar tranquilos. Hoje desconfiamos de nosso irmão, não damos a mão à quele que pede desesperado por ajuda. "Me dá um trocado", ignoro. "Quero comer", não me atenho. Sigo imponente na minha marcha metropolitana, sem deixar um mínimo de respeito a quem necessita. Vejo hoje que não sou nada, como muitos já viram e vêem quando se deparam com esse sol que queima e doura, que castiga e alimenta, que ensolara.
Levanto devagar, pois hoje não tenho pressa para nada. Penso comigo como pude deixar tudo isso para trás. Há quanto não via, há quanto não sentia esse outro mundo? Meses? Anos? Não importa quanto, pois aqui não há tempo, não há data. Cada coisa cresce no seu ritmo, morre no seu espaço, sem desrespeitar ninguém. O pássaro voa alto, é arrebatado pela ventania e cai. Machucado. Dolorido, mas luta, pois aquele é seu espaço também e não admite ser expulso dali. Luta, pois é feliz. Não escolheu ser pássaro, por isso é livre. Não lutou para ser pássaro, não fez questão e é livre.
Não sabemos hoje se teremos um amanhã decente. Pensar no amanhã é loucura, é entregar à nossa poderosa imaginação certezas que podem não ser. Temos que voar, nos permitir voar e lutar para continuarmos assim. Somos livres até o quanto pudermos aniquilar nossos preconceitos, até o quanto pudermos nos deixar ser pássaros. Na pele hoje sinto o que não dou importància nos infinitos e preciosos instantes que passam por nós e não percebemos. O sol brilha, o pássaro luta e a pedra me acolhe, mesmo fria. Vale a pena sermos tudo num mundo onde somos nada?
No meu colo cai uma folha, solitária. Sorrio. E agradeço por estar ali.