As folhas caídas mostravam traços de um inverno interminável; caminhar parecia um estalar contínuo, entre as secas folhas e galhos. Só ele se lembrava de outros tempos. Galhos pulavam feito esquilos, folhas estalavam feito papéis de um tempo oculto e as árvores apontavam os dedos nodosos ao céu sempre escuro e enevoado.
Vez em quando ele cruzava com outros seres esfarrapados e confusos, cheios de roupas reaproveitadas dos outros que se foram. Ninguém se falava porque o outro poderia ser aquele que usaria suas roupas a seguir; então, era preciso seguir em frente.
O silêncio mortal cobria tudo como a manta de um segredo oculto. Nada se ouvia, nada voava, nada se distinguia como um traço do que se fora antes. O mutismo contrastava com a furiosa velocidade de seus pensamentos, sempre ocupados em andar e proteger-se do frio e da fome.
Sim, havia rumores de que as crianças haviam sido levadas a um lugar melhor, enquanto eles haviam sido deixados à própria sorte; também se falava nos becos, à meia boca, que haviam aqueles que ainda mandavam e, no entanto, ninguém mais obedecia. Certamente ninguém mais queria fazer parte de um conluio tão maligno; ele era um deles. O frio seco e cortante batia em ondas geladas e levantava as folhas secas num remoinho e ele, então, puxava os farrapos sobre a boca, ficando visíveis só seus olhos luminosos.
Ele andou um pouco e não precisou de muito tempo para achar de onde vinha o cheiro de fumaça de grelhado: Numa esquina qualquer, dentre prédios abandonados por famílias inteiras, estavam lá os Assadores; ele sentiu um nó no estômago, porque a fome lhe roía. Aproximou-se do grupo, que formou um semi-círculo ameaçador. Como ele vinha trôpego, alguém de dentro grunhiu alguma coisa e algum deles se destacou e chegou perto com o forcado.
--Que é que você tem aí?
Ele apenas ocultava a mão sob o manto sujo.
--Nada, não.
--Deixa ver.
Ele levantou as mãos e sua barriga seca apareceu. Havia a fome, uma dor que quando relembrada, move os mundos externo e interno.
--Pode passar.
--Estou com fome.
--Está com sorte. Ratazana das boas. Gigante. Gorda. Vai sobrar um pedaço. Quer?
--Quero.
--Vai ter de ajudar a gente.
Viu os olhos do grupo. Eles procuravam nele os traços que os distinguiam dos outros ermitões, mais selvagens em sua busca de alimento. Ele não tinha estes traços. Ele falava e ainda era humano. Ele falava.
Comeu a carne de rato com a avidez dos mortos de fome. Lambeu os beiços, lembrando que este era agora um petisco raro. Com tanta secura, até os ratos se tornavam raros, de tão caçados que foram.
Deram-lhe um forcado e uma faca longa e afiada. O mais velho do grupo lhe deu o batismo, com um crucifixo empoado roubado de uma igreja qualquer. Ele recebeu seu nome de batismo. O nome do velho era João.
Ele virou Jesus. Foi assim que lhe chamaram daí em diante, porque havia sido batizado por João, sem água e com um crucifixo empoado roubado de uma igreja qualquer. Jesus se adaptou rápido, porque comendo melhor e agindo em grupo, garantia a subsistência de si e dos outros. Jesus era forte, Jesus tinha a fé que remove as montanhas. Ele até pegou a faca de um outro que caiu morto numa emboscada letal. Carregava duas facas e seu forcado estava sempre polido, pronto para seu uso mortal.
Jesus virou o tal.
João um dia, perdeu sua cabeça.
Traíram Jesus num dia escuro como aquele; ele foi entregue para o grupo de selvagens que procurava se alimentar de uma maneira mais radical. Jesus perdeu as facas e o forcado. Ele olhou a árvore cheia de nódulos que apontava o céu ressequido e cinzento e levantou as mãos aos céus e murmurou, entre dentes:
--Senhor, porque nos abandonastes?
E Jesus foi ao céu, não sem antes deixar os seus carcereiros estendidos e cegos por terra, procurando entre os destroços sua última prova de fé, até virem os ratos mais gordos que haviam crescido por perto.
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